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O impacto da redução da participação científica nacional nos cenários de crises hídrica e energética no país

Por Décio Semensatto

Assim como tem acontecido no cenário ambiental, que vem sofrendo com o avanço das queimadas no país, onde a participação científica nacional por meio de sua coleta de dados tem sido reduzida ou, por vezes, ignorada para a tomada de decisões no âmbito governamental, nos segmentos hídrico e energético o Brasil pode estar indo para o mesmo caminho, ampliando ainda mais o risco de crise nesses setores.

Recentemente, muitos colegiados associados aos ministérios foram esvaziados ou extintos, inclusive com a diminuição ou exclusão da participação de entidades de representação de cientistas, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e a Academia Brasileira de Ciências (ABC). Isso reduziu significativamente o diálogo entre a administração pública e o meio acadêmico, que com sua vasta produção de dados e informações poderia contribuir ainda mais nos processos decisórios estratégicos para o país. Por exemplo, no caso do Conselho Nacional da Amazônia, criado em 2020, a participação da comunidade científica é praticamente nula, o que diminui muito a possibilidade de aplicação da experiência e conhecimento que temos sobre esse bioma.

Apesar de diversas análises acerca da crise hídrica serem desenvolvidas por pesquisadores nas universidades e em institutos de pesquisa nos últimos anos, a produção científica pode não alcançar o impacto desejado e possível justamente pela necessidade de se haver maior abertura de espaços de interação entre a gestão do governo e a comunidade científica, que ocorre por meio de fóruns permanentes, colegiados dos ministérios e secretarias estaduais, fomento a projetos direcionados às políticas públicas e atuação de cientistas em cargos estratégicos, entre outros.

O momento reforça a necessidade de maior participação da comunidade científica. É importante lembrar que as crises hídrica e energética estão de mãos dadas, justamente porque a produção de energia no país depende muito das condições climáticas e dos recursos hídricos, que por sua vez dependem de as bacias hidrográficas estarem bem conservadas para contínua produção de água. Uma crise puxa a outra, trazendo impactos diretos para toda a sociedade. Se os governos aproveitassem melhor a capacidade científica nacional, os efeitos das crises associadas ao meio ambiente muito provavelmente seriam bem menores.

Um exemplo desse ruído no diálogo entre os atores está no avanço das queimadas, em especial na Amazônia e no Pantanal nos últimos anos, e a forma como a esfera pública tem trabalhado a gestão de dados produzidos pela Ciência.

Temos a produção técnica e científica de universidades e institutos de pesquisa sobre os cenários de mudanças climáticas, com destaque para a atuação do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE) e Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA). Dados científicos publicados no formato de relatórios e de artigos científicos normalmente chegavam à gestão governamental por meio da participação de cientistas nos colegiados ou de atuação de cientistas em cargos nos ministérios com algum poder de negociação e decisão.

Na contramão e numa postura obscurantista, o governo federal decide agora alterar a atribuição de gestão e divulgação de informações sobre incêndios e queimadas no país, passando do INPE para o Instituto Nacional de Meteorologia (INMET), além de mudar a forma de registro e divulgação de dados. Isso impacta grandemente a série de dados construída pelo INPE nas últimas décadas e as simulações de mudanças climáticas no Brasil, o que certamente elevará as incertezas sobre o cenário hídrico e energético no futuro.

Se queremos água para beber, produzir alimentos, energia e realizar todas as nossas atividades, temos que controlar as queimadas. Sabemos detalhes dessa relação porque cientistas brasileiros descobriram. Outro exemplo foi a recente troca de direção do INPE porque os dados sobre queimadas desagradaram. Preferiu-se desacreditar um cientista renomado que alerta para o problema, ao invés de combater o próprio problema numa ampla perspectiva. Esses tipos de ação enfraquecem o diálogo e cria barreiras para que a contribuição do que a Ciência produz de melhor seja usada em benefício nacional. Todos perdemos.

Antes da decisão de mudança pelo presidente Jair Bolsonaro, cientistas do INPE divulgaram relatórios que demonstravam o aumento expressivo das queimadas na Amazônia e no Pantanal. Esses relatórios chamaram atenção da comunidade internacional, que criou formas de pressão política conforme a situação e a gravidade.

O desinvestimento em Ciência no Brasil, tanto no aspecto da infraestrutura quanto de pessoal, vem desde 2014 corroendo toda a estrutura de produção do conhecimento pelo próprio país. Isso conduz a uma dependência cada vez maior do que é produzido por outros países, que muitas vezes está mais alinhado à realidade local, ou vamos nos iludir de que cientistas de outros países irão estudar nossos recursos hídricos e energéticos?

Perder espaço na Ciência diminui a nossa soberania, já que o controle do conhecimento científico é um elemento importante no jogo geopolítico. É notório que governos de países que sustentam suas estruturas de produção científica e que buscam ouvir cientistas para apoiá-los em suas decisões, conseguem dar maior eficiência às suas ações, mesmo apesar de nem sempre seguir a Ciência o quanto seria necessário. O resultado é o alcance de níveis de desenvolvimento e de bem-estar social um pouco melhores, pelo menos para a maioria de suas populações. Isso se vê durante a pandemia, mas também se via antes na forma como tratam as mudanças climáticas e a conservação do meio ambiente.

Décio Semensatto é professor da Unifesp e pesquisador do SOU_CIÊNCIA