Desenvolvida pelo SoU_Ciência, a plataforma reúne documentos, vídeos e postagens que evidenciam omissões políticas e desinformação durante a pandemia de covid-19 no Brasil
Tamires Tavares
No dia 12 de março, data que marca cinco anos da primeira morte por covid-19 no Brasil, o Centro SoU_Ciência lançou oficialmente o acervo intitulado O Necrossistema — Evidências da política da morte na pandemia de Covid-19 no Brasil, uma plataforma digital que reúne evidências, documentos, registros audiovisuais e análises sobre a condução do período da crise no país. O evento, realizado na Escola Paulista de Medicina da Universidade Federal de São Paulo (EPM/Unifesp), foi transmitido ao vivo e contou com a presença de estudantes, pesquisadores, gestores públicos, familiares de vítimas da covid-19 e integrantes de movimentos sociais. Também estiveram presentes no auditório o Padre Júlio Lancellotti, referência na luta por justiça social e pelo direito à vida, representantes do gabinete da deputada federal Sâmia Bomfim e os pesquisadores Marcelo Bragatte, Anderson Brito e Isaac Schrarstzhaupt, do Instituto Todos pela Saúde (ITpS).
A mesa de abertura institucionalizou o tom do encontro: a memória como ferramenta de justiça e a ciência pública como aliada da sociedade. A professora Soraya Smaili, coordenadora do SoU_Ciência e ex-reitora da Unifesp, relembrou o início da pandemia, quando universidades brasileiras se mobilizaram para atuar na linha de frente da crise sanitária, apesar da ausência de apoio federal. “A Unifesp não teve apoio do governo Bolsonaro naquele momento”, afirmou. “Vivemos perseguições, desinformação institucionalizada e ausência de recursos. Ainda assim, a ciência respondeu com coragem e compromisso.”
Soraya Smaili apontou que o acervo é resultado de dois anos de trabalho coletivo de pesquisadores, estudantes e parceiros institucionais. Mais do que um repositório de documentos, a plataforma foi concebida como um testemunho histórico da política de morte e desinformação adotada por agentes públicos durante a pandemia. “A desinformação institucionalizada comprometeu gravemente a resposta brasileira à pandemia, atrasando a vacinação e contribuindo para um número de mortes que poderia ter sido evitado”, declarou.
Soraya Smaili, coordenadora do SoU_Ciência, ao lado de Fernando Atique, pró-reitor de Graduação e Pesquisa da Unifesp, durante o evento de lançamento do Acervo da Pandemia. (Comunicação SoU_Ciência/Unifesp)
O professor Fernando Atique, pró-reitor de Pesquisa e Pós-Graduação da Unifesp, também participou da mesa e falou em nome da reitoria e da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes). Historiador de formação, enfatizou a importância de “monumentalizar o trauma” da pandemia, não como celebração, mas como um gesto de reconhecimento e reparação social. “O acervo que hoje lançamos tem potência transformadora. Ele nos convida a refletir sobre como se deu a condução política da pandemia e oferece elementos para que tragédias como essa não se repitam”, comentou.
A mesa também lembrou que os efeitos da pandemia não se restringem ao passado. “Todos aqueles que sofreram com a covid-19 ou com suas consequências ainda vivem com cicatrizes. A pandemia não terminou — ela persiste na saúde mental, nas desigualdades sociais, na desconfiança em relação às instituições”, rememorou Atique.
A cerimônia foi conduzida por Marina Mendes da Costa, pesquisadora do SoU_Ciência, que agradeceu a presença de autoridades da universidade e representantes do Ministério da Saúde e de mandatos parlamentares parceiros e também destacou as instituições que colaboraram com a construção do acervo, como a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), o Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da Universidade de São Paulo (Cepedisa/USP), a Associação de Vítimas e Familiares de Vítimas da Covid-19 (Avico Brasil) e os coletivos de mídia Medo e Delírio em Brasília e Camarote da República.
Ao final da mesa, Soraya Smaili reforçou que o lançamento é apenas o início de uma nova etapa. “Este acervo não é um ponto de chegada. É um instrumento vivo, que nasce para resistir ao esquecimento, afirmar a ciência e exigir justiça”, enfatizou a coordenadora.
O evento reuniu representantes da comunidade acadêmica, autoridades, familiares de pessoas vitimadas pela covid-19 e membros de organizações da sociedade civil. (Comunicação SoU_Ciência/Unifesp)
Apresentação da plataforma e mesas temáticas: ciência, justiça e memória em diálogo com a sociedade
Após a mesa de abertura, o evento seguiu com a apresentação do Acervo da Pandemia de Covid-19, conduzida pelas pesquisadoras do SoU_Ciência, Vanessa Sígolo e Letícia Sarturi. A plataforma, desenvolvida em software livre (Tainacan), reúne um conjunto extenso de evidências organizadas por temas e agentes envolvidos na gestão da pandemia. Os registros incluem documentos oficiais, vídeos, áudios, postagens em redes sociais e análises técnicas, todos com curadoria científica e contextualização. A apresentação detalhou a estrutura do acervo, a seção “O que diz a ciência” e os mecanismos de colaboração pública, além de destacar o lançamento do Mapa da Necropolítica, material gráfico e interativo com conteúdos complementares em áudio.
Na sequência, a mesa “Memória, Verdade, Justiça e Reparação” reuniu diferentes perspectivas sobre os impactos da pandemia e os caminhos possíveis para investigação, julgamento e condenação dos responsáveis. A mediação foi feita pelo professor Pedro Fiori Arantes (SoU_Ciência/Unifesp). Participaram da discussão a diretora da Escola Paulista de Enfermagem/Unifesp, professora Janine Schirmer, a coordenadora do Centro Cultural do Ministério da Saúde, Fabíola Simoni Santos, a pesquisadora Cristiane Pereira, do Cepedisa/USP, a presidente da Avico Brasil, Rosângela Oliveira, e as estudantes de medicina da Unifesp, Marina Merisia e Giovanna Novais, integrantes da equipe de pesquisa do acervo. A mesa abordou temas como a atuação das universidades durante a crise sanitária, o luto coletivo, os obstáculos à responsabilização jurídica de autoridades e a construção de memoriais públicos.
Encerrando a programação, a mesa “Combate à Desinformação e Valorização da Ciência” foi mediada pela professora Débora Foguel (UFRJ/SoU_Ciência) e teve como foco o enfrentamento à desinformação e o papel da comunicação pública da ciência. Compuseram a mesa a médica intensivista Elnara Negri, da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP), a médica infectologista Luana Araújo, a professora Flávia Ferrari, coordenadora da campanha “Todos pelas Vacinas”, e o estudante Mateus Aranha, representante da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM). Os participantes discutiram os ataques sofridos por profissionais da saúde, a ausência de formação em comunicação científica nos currículos universitários e estratégias populares de mobilização durante a pandemia.
Após as mesas, o evento foi aberto à participação do público, com depoimentos de familiares de vítimas, profissionais da saúde e divulgadores científicos. Entre os que se manifestaram estavam Paola Falceta, fundadora da Avico Brasil, Vinícius Penteado, biólogo e divulgador científico, além de familiares de vítimas da covid-19 e profissionais da saúde com décadas de atuação no SUS. As falas reforçaram o compromisso coletivo com a memória, a justiça e o direito à verdade histórica.
O evento foi encerrado com aplausos do público e a reafirmação do papel da universidade pública como guardiã da memória social e promotora de políticas baseadas em evidências científicas. A gravação da transmissão está disponível no canal do SoU_Ciência no YouTube.