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Ex-reitores de universidades públicas federais destacam crise do Inep e o cenário frente ao Enem

O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), criado em 1998 durante o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso e gestão do Ministro da Educação Paulo Renato Souza, teve, inicialmente, o objetivo de avaliar o desempenho dos estudantes do ensino médio. A partir de 2004, no governo do Presidente Lula e com Fernando Haddad como Ministro da Educação, foi adotado como processo de seleção para ingresso nas universidades federais integrando um conjunto de iniciativas visando à qualificação do ensino superior e a sua democratização, por meio da racionalização do acesso, diminuição do ônus financeiro, concentração dos estudos e esforços dos candidatos, além de outras medidas estratégicas como a política de cotas, criação de novos cursos, expansão de vagas, entre outros.

Até a criação do Enem os vestibulares eram realizados por cada uma das instituições de ensino superior do país, um desafio colossal para a juventude, tanto por seus programas e formatos diferentes como pelo custo para concorrer aos vestibulares de várias universidades, o que tornava impossível a um jovem sem condições financeiras concorrer em situação de igualdade.

A adoção do Enem pelas universidades federais foi um processo lento, bem discutido em cada instituição, pois foram necessárias medidas de ajuste durante a fase experimental, mas seus méritos foram se evidenciando, sobretudo quando ele incorporou-se ao Sistema de Seleção Unificada (Sisu) em 2009 (Governo do Presidente Lula).

De certo modo, o Enem e o Sisu foram fortalecidos pelo sistema universitário federal, posteriormente seguido por várias instituições de ensino superior públicas.

Além disso, o Enem conferiu personalidade ao processo de acesso ao ensino superior, fazendo dele um evento de significado nacional, isto é, a cada ano anunciando mais uma geração em busca de estudos superiores para avançar na qualificação profissional e na formação de cientistas, artistas e intelectuais do país.

Os conteúdos programáticos e os métodos de exame do Enem foram sendo amadurecidos e estabelecidos com base em: (a) corpus de conhecimento reconhecidos em cada área de saber e atividade, (b) evitar incursões ideológicas e opinativas, (c) clareza e ausência de truques e armadilhas, (d) valorização de questões atuais e prementes da humanidade e do país, (e) valorização da cultura e informação obtidas pelos candidatos em seu cotidiano, em suas leituras próprias, conversas, experiências, viagens, cultivo musical, entre outros, (f) sentido universal e igualitário,  e para tanto contou com um grande número de professores de todo o país na elaboração metodológica e fundamentada das questões.

 Além de sua importância como sistema técnico e operacional de seleção mais avançado, o Enem tornou-se um marco da valorização da atividade intelectual metódica, criteriosa, crítica, cooperativa e independente e, por isso mesmo, um dos meios do Brasil formar gerações capacitadas e críticas.

Por todas essas razões o Enem tornou-se alvo imediato de constrangimento, descrédito e solapamento pelo atual governo, que tomou medidas ora ostensivas, ora camufladas na tentativa de desmoralizar seu funcionamento, dentre elas tentando fazer da seleção de questões um instrumento de constrangimento ideológico e uma tentativa de pressionar e dispersar os quadros técnicos experientes de elaboração, pondo em risco a própria exequibilidade do concurso.

Como consequência disso, ocorreu uma crise institucional que culminou com servidores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) colocando à disposição, em massa, seus cargos comissionados à instituição. Entre eles, dois coordenadores estratégicos para os exames do Enem e Enade, que em suas respectivas cartas disponibilizando os cargos, justificam que as decisões sobre o Enem não seguem critérios técnicos e apontam uma fragilidade técnica e administrativa na gestão máxima do instituto. Essas decisões arbitrárias constituem-se afronta à autonomia de um órgão que deve ser de Estado — e não um aparato ideológico de governo.

Como parte da política adotada conscientemente, na qual o desmonte e a desconstrução da Educação brasileira, orientam as ações que levam ao desastre administrativo geral, o próximo Enem se encontra em risco e ameaça parte dos estudantes que não tiveram acesso à internet e computadores adequados para assistirem as aulas online, comprometendo o caráter inclusivo, de acesso à universidade pública.

Diante dessa situação inédita desde a criação do Inep, cabe às universidades, que recebem todos os anos milhares de jovens oriundos do Enem e Sisu, enfatizarem a discussão e contribuírem para alertar a sociedade e os parlamentares sobre as consequências da situação instalada dentro do Inep e no MEC. Há uma urgente necessidade de debate sobre o tema, buscando sensibilizar a todos, pois a questão vai além de uma crise em um ministério ou um conflito de pessoas, tampouco uma simples imperícia de governo, mas (como no caso da gestão da epidemia e da vacinação) de um projeto demolidor desse programa brasileiro que vem dando certo, a despeito de todas as dificuldades.

A instabilidade gerada pelo presidente Bolsonaro, no Enem, é assunto que transborda em muito a esfera estritamente administrativa e o âmbito do MEC, pois se trata do cumprimento de item declarado e central do “programa ideológico” deste governo. É a efetiva interferência no teor e na forma das questões para conformá-las às pautas de moralidade comportamental, de percepção da realidade e de versão idiossincrática da história.

Essas condutas prevaleceram em governos militares, sob os quais se tentava moldar as mentes dos jovens pela atuação combinada de quadros da Escola Superior de Guerra (ESG) e de agentes do Serviço Nacional de Informação (SNI).

Entende-se que o propósito não é apenas barrar questões que o governo considere destoantes ou hostis ao seu ideário, e sim, por meio do processo seletivo, moldar o repertório, as linhas de pensamento e os critérios de julgamento de gerações sucessivas.

Lembremos que as provas do Enem exercem imediata influência nas aulas de ensino médio, bem como já implicam um embrião de seletividade dos que comporão o corpo discente das universidades.

Por tudo isso, é imprescindível, desde já, obstar essas iniciativas por sua ilegalidade e por seu caráter nitidamente arbitrário.

Assinam este documento:

  1. Ana Lúcia Gazzola – Reitora da UFMG, 2002-2006
  2. Carlos Alexandre Netto – Reitor da UFRGS, 2008-2012, 2012-2016
  3. Dilvo Ristoff – Reitor da UFFS, 2009-2011
  4. Eliane Superti – Reitora da UNIFAP, 2014-2018
  5. Luiz Pedro Antunes – Reitor da UFF, 1994-1998
  6. Margarida Salomão – Reitora da UFJF,1998-2002, 2003-2006
  7. Mario Neto Borges – Reitor da UFSJ, 1998-2004
  8. Newton Lima – Reitor da UFSCar,
  9. Ricardo Berbara – Reitor da UFRRJ,
  10. Roberto Leher – Reitor da UFRJ, 2015-2019
  11. Roberto Salles – Reitor da UFF, 2006-2010, 2010-2014
  12. Rui Oppermann – Reitor da UFRGS, 2006-2020
  13. Soraya Smaili – Reitora da UNIFESP, 2013-2017, 2017-2021

*Credito da foto - Gabriel Ramos