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Estudantes que não puderam cursar universidades públicas e recorreram ao FIES vivem agora o pior dos mundos

Uma das utopias do capitalismo é o endividamento crônico de famílias e indivíduos, uma forma moderna de servidão por dívida, obrigando pessoas de todas as idades a vender sua força de trabalho para poder pagar financiamentos que contraíram, inclusive financiamentos para garantir direitos fundamentais, como saúde e educação. O endividamento estudantil é especialmente perverso, faz com que recém-formados  ingressem no mercado de trabalho já endividados, aceitando qualquer emprego (quando encontram) e qualquer remuneração para poder pagar a dívida pelos seus estudos.

O cidadão transformado em consumidor, agora em sujeito endividado, deve então “empreender” ou “se virar”, para poder pagar dívidas que ele e sua família acumularam, muitas vezes desde o nascimento, e que o acompanharão até a morte. Nos últimos dias, a dívida dos estudantes brasileiros com o FIES tem merecido destaque na mídia, retratando pesadelo e enorme preocupação com os recém-formados.

O polêmico programa que inundou os cofres das universidades privadas, turbinando fusões e formação de megaempresas financeirizadas, mostra na crise econômica sua face mais perversa: a vítima, ao final, é o suposto beneficiário, o estudante. Com alta inadimplência e financiando cursos duvidosos por preços sem controle, o FIES deslocou recursos que poderiam ir para a educação pública para ampliar os negócios da educação. No caso do ensino superior, quase sempre uma formação de pior qualidade foi entregue junto com uma dívida que coloca os estudantes em condição de desespero ao procurarem trabalho para saldar o débito.

O endividamento estudantil hoje é tido como um dos maiores problemas nos EUA, somando 1,7 trilhão de dólares (o equivalente ao PIB brasileiro) – no momento com pagamentos suspensos pelo governo Biden. A editora da Unifesp lançará em breve livro de Chris Newfield sobre o tema. Na América Latina, o país que mais forçou o endividamento estudantil foi o Chile, com seu modelo ultraneoliberal herdado de Pinochet. Resultado: rebeliões estudantis desde 2006 (lembram da “revolta dos pinguinos”?) obrigaram o país a discutir o assunto, o que implicou na aprovação, em 2018, de lei que garante a gratuidade na educação (pública e privada), com progressividade até alcançar a universalidade. As mesmas rebeliões chilenas permitiram a convocação de uma nova constituinte, com ampla vitória do campo progressista.

A transformação de direitos sociais em negócio, entre eles os dois mais fundamentais, saúde e educação, aumenta o individualismo, a desigualdade, o sofrimento e a violência. Ao invés de uma sociedade que garanta a cidadania e o bem-estar social, a lógica do capital entrega promessas, cuja outra face da moeda é o mal-estar: o cidadão é transformado em consumidor, o consumidor em sujeito endividado e no sofrimento social, com múltiplas consequências. Condenar o estudante a sair da faculdade com enorme dívida é rifar o futuro das novas gerações. Retomar a expansão das universidades públicas (como previa o Plano Nacional de Educação) é tarefa urgente: educação de qualidade e gratuita é um direito, cidadania não é dívida.   

(Pedro Arantes é professor da Unifesp e pesquisador do SOU_Ciência)