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Abordagem dos vestibulares, mais um canal de alerta acerca da ciência nacional

Por Roberta Kelly França

A Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp( promovem os vestibulares mais tradicionais do país. Tradicionais não mais em número de inscritos ou por simples preferência dos vestibulandos, mas por não aderirem ao Enem e realizarem seus próprios processos seletivos, onde, diferentemente do exame nacional, protagonizam provas mais conteudistas, com uma abordagem mais tradicional das áreas do conhecimento.

A Unicamp, contudo, há alguns anos promove mudanças em seu processo seletivo, ofertando uma prova com questões mais objetivas e convencionais nas áreas mais duras do conhecimento, especialmente matemática, mas trazendo também questões interdisciplinares e atuais, além de promover a inclusão com a realização do vestibular para as pessoas indígenas, como foi aplicado pela primeira vez no Vestibular 2019.

Talvez, caiba aqui um esclarecimento sobre o porquê desse comparativo dos vestibulares tradicionais com o Enem. O exame, além do seu objetivo burocrático - automatizar e otimizar o acesso às instituições de ensino superior com a escolha pelos candidatos de até duas vagas ofertadas pelas instituições participantes do Sistema de Seleção Unificada (Sisu) -, e possibilitar que vestibulandos de qualquer lugar do país realizem as provas em sua própria região, tem também o objetivo de promover um tipo de prova mais interpretativa e conectada à contemporaneidade, que prioriza a avaliação dos participantes a partir de seu domínio do conhecimento contextualizado com as questões que nos afligem hoje, avaliando o potencial de raciocínio analítico.

Desta forma, coerentemente, o exame aplica a composição de nota final baseada na Teoria de Resposta ao Item (TRI), o popular sistema “antichute”, onde a avaliação do todo é compreendida pela avaliação das partes e assim não traz em seu conteúdo temas regionais, mas questões amplas de maneira contextualizada. Por isso, sem dúvidas, o Enem é um processo seletivo mais inclusivo e democrático, e o efeito da adoção do Sisu pelas instituições de ensino superior é percebido diretamente na composição de seus alunos ingressantes.

A partir disso, é comum esperar das provas do Enem a cobrança por uma reflexão mais politizada dos candidatos, porém, ainda incomum é que outros vestibulares tragam essa mesma perspectiva, como foi o caso da Unicamp, que no último dia 9/01, em seu segundo dia de provas, trouxe dois gêneros discursivos na prova de redação bastante inovadores e contemporâneos, considerando seus vestibulares anteriores.

O primeiro pedia aos candidatos um post “textão” para redes sociais, como sendo um adolescente de 15 anos atuante como digital influencer, abordando as vantagens e os perigos dessa atuação através de assuntos como o cyberbulling e o trabalho infantil; a segunda proposta pedia um manifesto sobre a redução de verbas sofrido pela Ciência em 2021, onde os candidatos deveriam se imaginar como um aluno contemplado com uma bolsa de iniciação científica suspensa devido ao corte de recursos na ciência. As instruções para essa segunda proposta foram ainda mais assertivas, trazendo para o conhecimento do candidato temas e instituições que, possivelmente, ele só teria acesso após entrar na universidade, como a questão das bolsas de pesquisa e a apresentação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) e das agEncias de fomento (Capes, Fapesp, CNPq, PIBIC).

Há pelo menos uma década a ciência brasileira sofre repetidos cortes, o que provoca insegurança com relação ao futuro no que tange ao seu potencial de competitividade e inovação. Vale ressaltar que não é possível praticar pesquisa de ponta sem estrutura de equipamentos e de recursos humanos e sem dar condições de sobrevivência com dignidade aos pesquisadores por meio da oferta de bolsas de pesquisa, para que os mesmos consigam se dedicar exclusivamente aos estudos.

Talvez, a diferença que tenha motivado o posicionamento de uma das maiores universidades do país é que no governo Bolsonaro os cortes seguem acompanhados do desmonte do conjunto de instituições e políticas que subsidiam a Pesquisa Científica, de âmbito nacional, como temos visto acontecer com a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal do Nível Superior (Capes) e o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP). Do mês de dezembro/2021 até agora diversas foram as manifestações, inclusive da própria SBPC, contra esses desmontes e outras medidas autoritárias e negacionistas do atual governo.

O descompromisso do presidente Bolsonaro com a ciência, mesmo em tempos de pandemia, onde, mais que em outros momentos, a ciência demonstrou sua importância para a sociedade, dando respostas rápidas e de interesse coletivo (como a identificação do DNA do vírus da Covid-19 revelando seu comportamento e a consequente produção de vacinas que, finalmente, têm freado as mortes provocadas pelo vírus) evidencia também seu compromisso com interesses obscuros, reforçados por esse desmantelamento das instituições que fomentam o país e poderiam colocá-lo em condições para ocupar posições de destaque no ranking científico mundial.

Por todo esse cenário, é de se compartilhar a convicção de que Bolsonaro há de passar, mas, em tempos de negacionismo que segue como mais um vírus traiçoeiro se adentrando na sociedade, é preciso valorar verdadeiramente a iniciativa da Unicamp. Mais do que isso, é preciso seguirmos juntas e juntos em defesa da ciência.

Roberta Kelly França, é bibliotecária na UFABC e bolsista técnica no SoU_Ciência