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Para que serve uma reforma?

Por Hironobu Sano

Foi aprovada, em 23 de setembro de 2021, na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, a Proposta de Emenda à Constituição PEC 32/2020 sobre a Reforma Administrativa. Não seria um exagero chamar de proposta de deformação administrativa e, como tal, merece a lata do lixo. Em tempos de desenvolvimento sustentável e mudanças climáticas, melhor buscar sua reciclagem, se possível for.

A reforma administrativa é um processo contínuo e necessário para ajustar o funcionamento da máquina pública às exigências que os novos tempos trazem, mas essa já começou errada, pois não houve discussão prévia com a sociedade, tendo sido elaborada nos bastidores do Ministério da Economia de um governo que, a cada dia, perde mais legitimidade. O debate ficou para a Câmara dos Deputados, que realizou audiências públicas, mas como aprofundar a análise da PEC e das 62 emendas em um prazo tão curto? [1]

Uma reforma só se justifica para resolver um problema, que deve estar bem definido e resultar da discussão com os mais variados atores. Caso contrário, incorre-se na possibilidade de, por exemplo, tentar resolver problemas inexistentes, atacar sintomas e não suas causas, enfim, de empurrar goela abaixo um arremedo de reforma que fica devendo respostas ao campo democrático.

Um debate de ampla magnitude não pode ser baseado no senso comum, mas sim, em dados, evidências e diálogo. Mas, quais seriam, então, os problemas da administração pública para os propositores da PEC 32? E quais as soluções propostas? Quais os objetivos das mudanças? Vamos buscar pistas na Exposição de Motivos da PEC 32[2] (EM) e na própria proposta.

Objetivos

A leitura da EM permite identificar dois objetivos centrais: (a) reduzir os custos com a máquina pública e (b) modernizar a administração pública para torná-la mais ágil e capaz de entregar um serviço de melhor qualidade.

Mas quais os problemas que levaram à proposição desses objetivos?

Problemas na administração pública

Um dos aspectos que se sobressaem na EM é a apresentação de uma visão genérica da máquina estatal: incapaz de entregar um serviço adequado e de qualidade, sem eficiência e altamente moroso. A conclusão é a de que o “Estado custa muito, mas entrega pouco” (EM, 2020, p. 2). Nessa pretensa “análise”, o setor público é visto como algo homogêneo e igualmente ruim, sem considerar diferentes capacidades estatais, seja entre ministérios, seja entre níveis de governo.

Decerto que há problemas e fragilidades em diversos aspectos, mas a EM deveria trazer esses pontos para subsidiar o debate de modo a encontramos caminhos para fortalecer a máquina pública.

Além do mais, a EM desconsidera iniciativas reconhecidas internacionalmente, como o Sistema Único de Saúde (SUS), que possui um mecanismo complexo de coordenação federativa e que envolve desde processos decisórios abarcando as três esferas de governo até a implementação das ações pelos agentes comunitários. Infelizmente, todo esse sistema foi ignorado pelo Governo Federal nas ações de combate à pandemia da Covid-19.

As “soluções” da PEC 32/2020

1. Uma das propostas para combater a ineficiência do serviço público seria por meio de contratações temporárias e, pasmem, a temporada pode durar até 10 anos!

As contratações podem ser tanto na área meio como nas finalísticas e, embora mencione a necessidade de um processo seletivo, não estão claros os parâmetros que orientarão a escolha desses gestores provisórios. Abrem-se enormes brechas para o patrimonialismo, corrupção e aparelhamento da máquina pública, o que levaria a uma desestruturação das organizações públicas e dos serviços prestados. Vislumbra-se um retrocesso na gestão pública, com impactos desastrosos para aqueles que mais precisam dos serviços públicos.

2. Outros aspectos buscam afetar a remuneração e incentivos, tais como a eliminação do adicional por tempo de serviço, das férias superiores a 30 dias, da retroatividade de indenizações sobre a remuneração, da licença-prêmio, bem como da progressão apenas por tempo de serviço.

Essas propostas poderiam até contribuir para reduzir o peso da folha de pagamento, mas sem incluir os supersalários – e que estão acima do teto – nas carreiras do legislativo, judiciário, ministério público e militares, a equação fica incompleta e os efeitos são desiguais. Perde-se a oportunidade para uma ampla discussão sobre o assunto.

3. A PEC enfatiza a avaliação de desempenho e detalha alguns pontos relativos à exoneração em caso de atuação insatisfatória. Mas, essa temática, juntamente com a definição das formas e critérios de avaliação, poderia ser tratada em legislação federal, tal como prevista pela Emenda Constitucional n. 19, de 1998, e que ainda aguarda regulamentação!

O foco excessivo na punição pela expulsão deixa clara a falta de preocupação com o fortalecimento da capacidade estatal que, por sua vez, seria o caminho para a melhoria no desempenho e na qualidade.

4. A PEC ainda propõe a cooperação com o setor privado para a execução de serviços públicos, embora a regulamentação fique para as normas infraconstitucionais. A articulação entre o setor público e o privado não é novidade no Brasil, mas a EM não esclarece quais os aprendizados e limitações dos modelos atuais de forma a justificar a ampliação. Também não discute se os mecanismos atuais de parceria aumentaram a eficiência e melhoraram a qualidade dos serviços públicos, com redução de custos.

Por fim, não se pode esquecer que esse tipo de proposição demanda um servidor público mais fortalecido e capacitado para identificar áreas em que as parcerias poderiam funcionar, bem como para elaborar propostas, monitorar e avaliar. Tudo isso sem ser capturado por interesses privados.

Mas, afinal, para que serve esta reforma?

A PEC 32 pode até servir para agradar parcela do “mercado” e do que restou de apoiadores do governo de plantão. Mas as propostas não servem para reduzir o custo da máquina e muito menos melhorar sua eficiência e qualidade. Em sentido contrário, há riscos de se reforçarem práticas patrimonialistas, de captura do Estado por interesses privados, piora na gestão dos serviços públicos e que, por fim, levará ao aumento das desigualdades.

Todo o processo relacionado a esta PEC carece de maior legitimidade: foi proposto por um governo que atua para desmantelar a máquina pública – incluindo a educação, saúde e ciência –, não houve ampla discussão com a sociedade, afeta apenas uma parcela dos servidores públicos enquanto mantém privilégios intocados em certas castas.

Enfim, seria melhor recomeçar o debate em bases mais republicanas.

[1] O prazo para apresentação das emendas encerrou-se em 09 de julho de 2021 e a PEC 32 foi aprovada menos de 3 meses depois. Todas as etapas do processo de tramitação estão disponíveis em: https://www.camara.leg.br/propostas-legislativas/2262083, acesso em 22 out. 2021.

[2] Exposição de Motivos n° 00047/2020 ME, disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Projetos/ExpMotiv/MECON/2020/47-ME.htm, acesso em 22 out. 2021.

Hironobu Sano, Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e Pesquisador do SoU_Ciência