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Problemas na Capes, no Enade e visitas “virtuais in loco” do MEC enfraquecem um sistema de controle usado para justificar aumento de liberdade para as instituições

Por Rogerio Schlegel

Mecanismos centrais do sistema brasileiro de avaliação do ensino superior hoje revelam mal funcionamento dramático. A avaliação quadrienal da Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) está parada, por determinação judicial baseada na falta de critérios estáveis a serem seguidos pelos programas de pós-graduação. O Enade (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes) deste ano trouxe uma lista de problemas, que incluem imprevisibilidade, improviso e imperícia, refletida em um sistema de inscrição instável, que beirou o inviável. As “visitas in loco” para renovação do reconhecimento dos cursos de graduação estão se transformando em virtuais, eternizando a flexibilização ocorrida com a pandemia de Covid-19, sem que os requisitos para isso sequer estejam claros para as instituições de ensino superior.

A primeira reação daquelas e daqueles que têm compromisso com a construção de uma nação desenvolvida do ponto de vista democrático, humano e econômico é culpar pelos retrocessos o obscurantismo do presidente Bolsonaro e seus prepostos. Motivos para isso não faltam: são patentes a negação da ciência, a ojeriza à educação inclusiva, a guerra cultural alinhada a valores tenebrosos, o esforço de colocar abaixo os avanços modestos mas louváveis obtidos com a Constituição de 1988, por exemplo. No entanto, a crise da avaliação externa do ensino superior oferece a chance de enxergar além. Permite alcançar a própria explicação para a chegada e manutenção no poder deste grupo que parece despreparado, mas sabe cumprir missões. A quem interessa precarizar a avaliação externa do ensino superior brasileiro?

Primeiro, vale a pena oferecer detalhes para quem está acompanhando as denúncias sobre o Inep e o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), mas segue menos informado sobre outras facetas da atuação corrente do MEC.  Na frente da pós-graduação, após quatro anos de preparação e um esforço concentrado e gigantesco por parte dos programas, a avaliação 2017-2020 foi parar na Justiça. O Ministério Público Federal entende que aquilo que está sendo exigido como critério para atestar a qualidade dos programas mudou ao longo do ciclo avaliativo. Não se poderia cobrar desempenho em métricas que só foram definidas na véspera da entrega dos relatórios e se aplicam aos quatro anos anteriores. Liminarmente, a Justiça aceitou o argumento e desde setembro o processo avaliativo está parado. Dele dependem, por exemplo, a indicação da qualidade dos programas para potenciais pós-graduandos, a avaliação de parte do trabalho de docentes e discentes e a concessão de bolsas e financiamentos.

A realização em 2021 do Enade, que serve para avaliar a capacitação de quem sai da graduação e é exigência para obtenção do diploma, só foi definida em meados do ano, inviabilizando a devida preparação por parte de estudantes, coordenadores de curso e instituições de ensino superior. Os problemas gerados vão além do fato de a pandemia de Covid-19 ter afrouxado os laços entre formandos e universidades, dificultando localização, conscientização e troca de informações em curto espaço de tempo. Inicialmente, era intenção exigir dos formados no meio do ano que, de surpresa, prestassem o exame; por descabida, a exigência foi relaxada. Um formulário de preenchimento obrigatório pelo estudante foi disponibilizado e, depois de um tempo, retificado; quem deixasse de responder às perguntas adicionais estaria em situação irregular – impedido de fazer a prova e colar grau. O sistema com final “.gov” funcionou precariamente: o preenchimento era difícil e inviável a depender do navegador de internet utilizado; estudante que tinha completado o cadastro poderia constar como tendo situação pendente; aluno com cadastro completo não conseguiu ver seu local de prova. Os pedidos de adiamento feitos pelas instituições de ensino superior foram rechaçados – não sem longos períodos de suspense sugerindo que seriam levados em conta.

“Avaliação externa virtual é um marco na educação superior”, anuncia o site do MEC[1] para louvar sua própria iniciativa de estender o relaxamento das visitas “virtuais in loco” de reconhecimento para além da pandemia de Covid-19. E assim a avaliação não presencial vai virando “avaliação externa virtual in loco”, como consta do material de orientação do Inep, em um duplipensar ridicularizado por George Orwell há sete décadas. Com exceção de medicina, enfermagem, odontologia e psicologia, as demais carreiras terão atos como renovação do reconhecimento do curso baseados em avaliações in loco... 100% online.

Quem já conversou com avaliadores do ensino superior pode imaginar os riscos que esse “avanço” potencializam. Presencialmente, havia casos de bibliotecas alugadas para mostrar aos avaliadores e de visitas agendadas para endereço diferente daquele em que o curso de fato funciona. O Inep conta que o GPS de aparelhos como telefones celulares será suficiente para detectar burlas. Crianças que já fraudaram o sistema de GPS para ganhar pontos no jogo virtual Pokemon Go! duvidam que isso vá funcionar.

Os mecanismos de avaliação externa, hoje parte do Sinaes (Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior), foram postos de pé a partir dos governos Fernando Henrique Cardoso como contrapartida à maior liberdade dada às instituições de ensino superior para criação e gestão de cursos, em grande medida garantida pela Lei de Diretrizes e Bases de 1996. A flexibilização passou também pela autonomia para definir o currículo das carreiras a partir de diretrizes gerais e chegou à forma de organização interna das instituições. O controle da qualidade, dizia-se, seria feito a posteriori.

Aliados e adversários desse movimento de relaxamento dos controles a priori nascido nos anos 1990 concordam em um ponto: ele beneficiou basicamente as instituições privadas. Inevitável lembrar disso quando se pergunta a quem a precarização da avaliação da qualidade no ensino superior interessaria. Não se trata de associar leviana e automaticamente má qualidade e ensino superior privado no Brasil. Mas há concentração de má qualidade no setor. Um dado: no Enade de 2019, 43% dos cursos das privadas tiveram notas 1 e 2, as mais baixas em uma escala de 5; considerando apenas as privadas com fins lucrativos, quase a metade dos cursos (48%) ficou com notas baixas; nas públicas federais, esse índice foi de 5,3%.

Quem mais se beneficia com o afrouxamento do controle de qualidade do superior naturalmente é quem mais tem a perder com uma avaliação substantiva, consistente e contextualizada. Se é necessário separar o joio do trigo quando se fala das instituições privadas, é justamente essa tarefa que sai prejudicada com a crise da avaliação externa que se instalou no MEC.

Rogerio Schlegel, cientista político e pesquisador associado ao SoU_Ciência

*Com contribuições de Lidiane Cristina da Silva e Uirá Garcia

 [1] https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias/avaliacao-externa-virtual-e-um-marco-na-educacao-superior