Produtora Brasil Paralelo lança novo ataque de guerra cultural às universidades
Por Pedro Arantes, Soraya Smaili e Maria Angélica Minhoto
"Se você tivesse que escolher entre a verdade e a justiça social, o que escolheria?". Para alguns a resposta é fácil, para outros, nem tanto. Para os produtores da Brasil Paralelo (BP), responsáveis pelo lançamento do vídeo de ataque às universidades, no Brasil e nos EUA, intitulado Unitopia, essas e outras frases de efeito servem para costurar uma narrativa persecutória e revanchista sobre as universidades, a ciência, os professores e os estudantes. A BP já tinha produzido, em 2020, uma trilogia atacando as universidades, a educação laica e Paulo Freire, dando voz a detratores, ressentidos, amalucados, inclusive o Ministro da "Balbúrdia".
Universidades na Guerra Cultural
Mirar instituições de ensino e pesquisa é tática central na chamada Guerra Cultural, evocada no próprio filme e rotineiramente empregada por religiosos fundamentalistas, políticos extremistas, influenciadores oportunistas, negacionistas climáticos, movimento antivacina etc. Em Unitopia, os atiradores dessa guerra são pesquisadores e professores supostamente perseguidos e incompreendidos em suas instituições universitárias, que sofreram processos disciplinares, embates em sala de aula ou foram "cancelados" por estudantes e colegas.
As Guerras Culturais sempre estiveram presentes na história, dos impérios coloniais aos embates religiosos. Mas o termo adquiriu um novo significado no cenário pós-Guerra Fria, tornando-se um elemento central em muitos dos conflitos contemporâneos. A antiga luta de classes foi, em grande medida, substituída por uma batalha pela “alma das nações”, envolvendo disputas em torno de valores morais, identidades e dimensões simbólicas. Um embate entre forças progressistas e reacionárias, entre minorias vocais e maiorias supostamente silenciadas — até o ponto em que essas maiorias decidem retomar o controle e enfrentar o “inimigo interno”, levando o confronto às últimas consequências.
Esse e outros documentários da BP, que dão voz e imagem à visão tradicionalista, patriarcal e monarquista da história brasileira, acusam recorrentemente o campo progressista de não ser plural e não permitir múltiplas vozes e ideologias. Mas é exatamente isso que fazem em seus “documentários” e em Unitopia: mais de duas horas de ataques contínuos às universidades sem qualquer contraditório, apenas dando voz aos "perseguidos" em suas instituições e pseudoestudiosos que enfileiram pataquadas e preconceitos sem fim.
Quem fala pelas universidades?
Depois de quase meia hora acusando os movimentos negro, pró-Palestina e LGBTQIA+ de ter transformado as universidades em espaços degenerados de guerra identitária, os professores marxistas de seguirem doutrinando e o movimento estudantil de incubadora de militantes radicais, nada de dar a voz a alguns desses "ideólogos" e "déspotas" das minorias. E sequer dão voz aos que representam suas instituições como líderes de pesquisa em suas áreas de conhecimento, que são os docentes mais reconhecidos, com resultados de pesquisas de maior impacto e relevância, inclusive na recente pandemia ou sobre os eventos climáticos extremos.
Não há informação relevante nem contraditória, só a lamúria de ressentidos, seus casos de sofrimento pessoal, ou incompreensão institucional. São, em geral, professores, todos brancos, quase todos homens, nos seus 50-70 anos, a maioria desconhecidos como pesquisadores. As falas desses homens brancos é sempre acompanhada de uma trilha sonora planejada para gerar pânico ou desalento no espectador, em geral um violino lamentador. E por muitas imagens de banheiros, prédios e centros acadêmicos pichados, alunos pelados e usando drogas, piquetes e faixas de greves e manifestações etc. A BP é especialista em gerar pânico moral e assustar o seu público com supostas ameaças que precisam ser combatidas pelo seu exército de cidadãos de bem. Agitação e propaganda de extrema direita é a especialidade do grupo de jovens publicitários olavistas que toca a produtora.
Decadência da civilização?
Unitopia se encaixa na série de outros vídeos que retratam a suposta decadência moral, estética e intelectual que o campo progressista, com suas minorias combativas, estaria impondo à “civilização ocidental judaico-cristã”. Os antigos templos do saber, as universidades, teriam se tornado máquinas de produção ideológica na guerra cultural para colonizar as mais diversas áreas do conhecimento e profissões, do jornalismo ao judiciário, da biologia às artes. Esses bárbaros que tomaram de assalto em nome de suas utopias a civilização ocidental promovem na verdade uma distopia, e estão agora dominando a fortaleza do sistema universitário e avançando para dominar todos os aparelhos de reprodução cultural e simbólica.
Não é demais lembrar que o argumento de uma sociedade sendo “degenerada” por determinados “bodes expiatórios” é recorrente tanto no fascismo quanto no nazismo. Em 1937, Hitler organizou a exposição chamada Entartete Kunst (Arte Degenerada), na qual obras de arte de vanguarda, em geral expressionistas, foram expostas como exemplos de corpos e mentes deformadas, corrompendo a cultura alemã. A partir disso, o regime perseguiu esses artistas e os próprios comportamentos e corpos considerados “degenerados”, que incluíam pessoas doentes ou fisicamente diferentes, até definir os judeus como o alvo supremo. O ataque aos chamados degenerados sustentava a ideia de uma civilização superior (ocidental), uma religião superior (cristianismo) e uma raça superior (ariana). Essa lógica formou a base do racismo, do antissemitismo, da islamofobia e do desprezo pelos povos subalternos e colonizados.
Ilustração: Meyrele Nascimento/SoU_Ciência
Universidades americanas tomadas por esquerdistas?
Se Unitopia exala racismo, homofobia, islamofobia, ignorância e preconceito, tenta se amparar em alguns poucos dados objetivos e gráficos, quase todos contestáveis, de fontes duvidosas ou tratados com aberto viés. Na estratégia de gerar pânico e indignação, afirma, por exemplo, que 9 a cada 10 professores em universidades norte-americanas seriam esquerdistas (progressistas). A falsificação da fonte desse dado é facilmente detectável por qualquer pesquisador e reveladora da maneira como a BP “busca a verdade”. É citada como única fonte um preprint — uma versão preliminar de artigo que nunca foi revisado por pares ou publicado em revista acadêmica, que tem um claro viés metodológico (focado nas humanidades), uma base de dados precária, e, até hoje, nunca recebeu uma única citação. Além disso, foi escrito por um coach, estagiário em engenharia de software sem formação em pesquisa nem vínculo com grupos de pesquisa. Na época em que escreveu o artigo era estudante de ensino médio na modalidade EAD.
No entanto, o artigo nada científico, de um autor nada sério, serve como base para alimentar a teoria conspiratória de que as universidades americanas estão completamente dominadas por “esquerdistas radicais”. Preprints foram amplamente utilizados na pandemia de covid-19 pelos defensores da cloroquina e pelo movimento antivacina. É uma estratégia recorrente da extrema direita mobilizar material não revisado e mesmo propositadamente infiltrado no sistema de pesquisa quando pretende dar um verniz de base científica para suas pautas.
Mas esse apontamento de falsificação de fonte para a BP é irrelevante, já que consideram que todo o sistema de revistas acadêmicas é corrompido. Logo, tanto faz se o artigo passou ou não por pares e editores. Não é nosso objetivo aqui discutir os diversos problemas no sistema internacional de publicações acadêmicas, o que merece reflexão e análise crítica. Acontece que, em vez de apontar contradições, como concentração de poder, estratégias monopolistas, pressões mercantis, arregimentações pouco sérias, a BP entrevista longamente outra figra controversa, Peter Boghossian. O então professor da universidade de Portland State University submeteu 20 artigos fraudulentos à aprovação em revistas nas áreas de estudos de gênero e teoria queer. Ele conseguiu aprovar sete artigos até ser desmascarado. Seu sucesso nessas publicações comprovaria o viés das revistas de ciências sociais na área de teorias de gênero, aptas a engolir qualquer charlatanismo camuflado com as palavras de ordem identitárias. O tema é controverso, tem sido amplamente debatido e levou à condenação de Boghossian por conduta antiética.
A volta do Comando de Caça aos Comunistas
Vejamos agora a “história do ovo podre” do prof. Mauro Rosa. Segundo ele, a famosa batalha da Rua Maria Antonia, entre a USP e a Mackenzie, em outubro de 1968, e que resultou em dezenas de feridos e um estudante morto, teria ocorrido apenas porque os estudantes da Faculdade de Ciências e Letras da USP bloquearam a rua Maria Antonia e foram alvo do arremesso de um ovo podre por parte de um estudante da faculdade presbiteriana. O tal ovo parece que de fato existiu, mas o conflito ia muito além disso, o que Rosa não conta.
Retomemos os fatos: desde julho de 1968, o campus Maria Antonia da USP foi invadido por forças policiais e militares, como parte de uma ação para conter o movimento estudantil. Com a intensificação dos conflitos, as aulas foram suspensas por longos períodos entre julho e outubro de 1968. Os militares cercaram e ocuparam o prédio da Maria Antonia, tentando reprimir a organização estudantil. Grupos de estudantes de extrema direita, como o Comando de Caça aos Comunistas (CCC), intensificaram os ataques contra os alunos da USP. O confronto direto começou em 2 de outubro de 1968, quando estudantes do Mackenzie invadiram uma assembleia estudantil da USP. No dia seguinte, a situação escalou para uma verdadeira batalha campal, com o uso de paus, pedras, rojões e, apenas de um lado, o uso de armas de fogo, pelo CCC e estudantes do Mackenzie. As forças policiais, simpáticas ao regime militar, intervieram em favor dos estudantes do Mackenzie, o resultado foi um incêndio no edifício da Maria Antonia provocado por molotovs, dezenas de feridos e a morte do estudante José Carlos Guimarães.
Depois dessa tragédia, a situação se tornou insustentável. A reitoria então fechou o prédio da Maria Antonia e as atividades da faculdade foram transferidas, em 1969, para o recém-criado campus do Butantã, um ambiente mais controlado, longe do centro da cidade e das mobilizações políticas. Esse conflito foi um dos pretextos para que o governo militar endurecesse logo a seguir, promulgando o AI-5. A Batalha da Maria Antonia é uma história fartamente documentada e com diversos textos a respeito, mas foi resumida em Unitopia a uma mera briga entre estudantes provocada por um ovo podre.
A seguir, o sr. Mauro Rosa enfileira uma série de ataques ao curso de Sociologia da USP, passando por Florestan Fernandes, FHC e Haddad, todos “marxistas endemoniados”. A própria USP é apresentada como antro de comunistas, mesmo sendo uma universidade criada e gerida até hoje pelas elites paulistas e que formou 14 presidentes da República, dezenas de governadores e senadores, quase todos conservadores. Mauro Rosa, longe de ser um pesquisador da história da USP, tem graduação e pós-graduação em Letras, e estuda Machado de Assis. Tal como os protagonistas nas obras de Machado, ele é um "narrador não confiável". No seu Instagram apresenta-se como "colecionador de armas" e "assessor parlamentar de Alan Lopes", deputado do PL de Bolsonaro.
Um novo ovo podre contra as universidades públicas
De forma geral, a peça de propaganda da BP contra as universidades é esse mesmo "ovo podre" sendo arremessado sobre nós, agora não com o auxílio de armas do CCC e da ditadura, mas com a máquina de guerra audiovisual de publicitários habilidosos que dão a esse mesmo ovo uma casca vistosa. O diretor de Unitopia, Silvio Medeiros, é publicitário premiado, formado na PUC, que, segundo o documentário, também foi tomada por comunistas a partir dos anos 1990. E para quem gostou da peça de propaganda contra as universidades e discorda da nossa posição crítica, vale comentar que o roteirista de Unitopia, Renato Caruso, é bacharel, com mestrado e doutorado, todos pela USP, inclusive com bolsas da FAPESP e do CNPq. Se achasse a universidade pública tão ruim, não teria feito toda sua carreira acadêmica lá e se beneficiado de bolsas de agências de fomento públicas, não acham?
É possível perceber, apesar de todo o viés de Unitopia, que as universidades, em especial as federais, estão bastante precarizadas, com falta de manutenção, laboratórios e equipamentos defasados, falta de docentes e técnicos etc. Isso é fruto de 6 anos de desinvestimento e ataques incessantes dos governos Temer e Bolsonaro. E é justamente por isso que foram submetidas a todas as formas de constrangimentos, cortes orçamentários, ingerências e humilhações, e acusadas de balbúrdia, doutrinação, depravação, plantação de maconha e até de produção de drogas sintéticas nos laboratórios de química.
Universidade paralela ou por que incomodamos tanto?
Após a apresentação do primeiro episódio no YouTube, um dos donos da produtora apresenta orgulhosamente a parceria da Brasil Paralelo com o Centro Universitário Cristão Ítalo Brasileiro para formar os "novos historiadores" alinhados com a visão conservadora da história brasileira (o Brasil interpretado como "a última cruzada" cristã para "civilizar" o mundo, para quem não viu a série de história do Brasil da BP). A matéria de Amanda Audi, na Agência Pública, é bastante reveladora do curso, coordenado por um monarquista que fez parte do governo Bolsonaro e é assíduo entrevistado nos filmes da BP. A nota Enade do curso de história do Ítalo é 1,68 e a nota preliminar do MEC para o curso é 2, ambas as notas são péssimas. É esse modelo que a BP quer em substituição às universidades públicas brasileiras para formar os professores do futuro?
Unitopia é apenas mais um produto de Guerra Cultural no combate local e internacional que a extrema direita tem feito às universidades, ao pensamento crítico, aos professores e aos estudantes, aqui, nos EUA, na Turquia, na Hungria, na Rússia, em Israel, na Índia etc. As universidades incomodam fundamentalistas e extremistas, racistas e reacionários, porque denunciam a intolerância, o ódio, a violação de direitos, defendem a diversidade, a democracia, a Palestina, a ciência, a vacina e a vida.