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Será preciso mudar paradigmas econômicos e sociais sobre os meios de produção e consumo, algo já percebido e indesejado por algumas das principais lideranças mundiais

Por Décio Semensatto

Neste mês de novembro, ocorreu a mais recente conferência do clima, em Glasgow (Escócia), a COP26. O evento mobilizou por duas semanas mais de 200 países e milhares de organizações para buscar novos avanços em negociações, revisões e detalhamentos de compromissos firmados anteriormente. Finalizada a COP26, surge a questão: avançamos o suficiente?

Primeiramente, é preciso compreender que a questão climática é multidimensional, complexa e não aborda meramente o funcionamento da atmosfera. O aquecimento intensificado pela ação humana no último século e, principalmente, nas últimas três décadas, provocou uma série de consequências ambientais, econômicas, sociais e culturais, que se retroalimentam e são observadas desde a escala local até a global.

Elas vão desde o preço das hortaliças no mercado até a dispersão de doenças no planeta, passando por novos padrões de consumo e o surgimento de conflitos diplomáticos pela ocorrência de refugiados climáticos. Nesta perspectiva, é preciso revisitar dois conceitos-chave em Ecologia, que se aplicam à situação atual: o de “resistência”, ou seja, a capacidade de um sistema amortizar os impactos ambientais sem alterar sua estrutura e funcionamento atual; e o de “resiliência”, que é a capacidade do sistema retornar ao estado original observado antes de os impactos ambientais ultrapassarem sua resistência. Portanto, trata-se de referências sobre as condições em que o aquecimento global poderá provocar rupturas significativas (e esse momento está muito próximo) e como esse cenário poderá ser revertido, a depender do que resultar após tal ruptura.

Se mantivermos o atual ritmo de crescimento da emissão de gases estufa, a previsão é que nos próximos anos chegaremos ao “ponto de viragem”, ou seja, aquele que representará a ruptura da resistência global, justamente a que os cientistas alertam para não atingirmos. Nesse momento futuro, os eventos climáticos extremos (tempestades, alagamentos, furacões, nevascas, secas intensas etc.) serão mais frequentes e abrangentes, além de mudanças importantes locais nas médias de precipitação, temperatura e disponibilidade hídrica. Na realidade, isso já começou a ser observado. Mas, uma vez definitivamente atingido esse novo patamar, os efeitos sobre a vida humana serão intoleráveis em certas regiões do planeta, inviabilizando condições de manutenção material e de saúde. Por consequência, a resiliência poderá ficar severamente comprometida.

Os avanços da COP26 são importantes, mas relativamente tímidos em face do tempo e do esforço necessários. Várias ainda se constituem em promessas sem detalhamento suficiente sobre como serão cumpridas. No conjunto que avançou um pouco se destacam a redução do desmatamento, na qual o Brasil deve ser protagonista, a redução de emissões de metano e de uso de combustíveis fósseis, em especial o carvão.

A dificuldade em compatibilizar a desaceleração do aquecimento global com a manutenção dos modelos de economia e produção predominantemente vigentes é uma das principais travas em certas negociações sobre como cumprir as metas climáticas. Será preciso mudar paradigmas econômicos e sociais sobre os meios de produção e consumo, algo já percebido e ao mesmo tempo indesejado por certas lideranças mundiais.

A grande dificuldade é justamente promover essa mudança, que exige das principais economias globais um esforço monumental em reestruturar suas bases econômicas e implementar um novo tipo de relação em cooperação em produção de bens e serviços e conservação da natureza. Para alguns países, por exemplo, será o de remodelar completamente sua infraestrutura energética ou de abdicar de suas principais commodities baseadas em combustíveis fósseis e massiva emissão de carbono.

Para as pessoas individuais, será o de rever seu nível de consumo e o quanto ele exige do planeta, além de eleger e apoiar governos comprometidos com essa causa. Lideranças que não enxergam o mundo com visão abrangente ou que limitam suas perspectivas a muito curto prazo são as mais resistentes em iniciar essa tarefa. Coincidentemente ou não, algumas são as que conduzem os países e organizações que mais contribuem para o agravamento das condições climáticas. Portanto, tornar nosso futuro climático tolerável impõe um jogo diplomático bastante complexo, mas que não temos outra opção a não ser o de se engajar e viabilizá-lo.

A Ciência deve continuar contribuindo muito neste tema. Dentre suas ações, está a continuidade da formação de pessoas altamente qualificadas para lidar com as questões climáticas e correlatas, prever cenários futuros, propor soluções integradas e eficientes, além de avançar no conhecimento sobre o funcionamento do clima e suas interações com os componentes naturais e antrópicos. Adicionalmente, os cientistas devem ampliar sua inserção na sociedade para apoiar a conscientização da população, de agentes envolvidos nos processos decisórios e buscar ocupar papel cada vez mais central na governança dos países.

A participação dos cientistas brasileiros e do governo Jair Bolsonaro foram contrastantes durante a COP26. Por um lado, o governo notoriamente negacionista não foi capaz de despertar confiança em outras lideranças, adotando um discurso ora desarticulado de sua prática cotidiana (p. ex., dados de desmatamento da Amazônia amordaçados), ora lamentável em sua essência (p. ex., “Onde há floresta há muita pobreza”, nas palavras do ministro do Meio Ambiente). Por outro, cientistas brasileiros demonstraram que o negacionismo não grassou na academia de nosso país e que nossa produção científica é absolutamente relevante na construção de um futuro melhor.

Neste momento, vale destacar que a comunidade científica brasileira atravessa grande desafio pela ação de sufocamento imposto pelo progressivo desinvestimento, desvalorização das instituições e seus profissionais, bem como pelo desmantelamento da CAPES e do sistema de avaliação da pós-graduação. Desabilitar o sistema de produção científica e formação qualificada de profissionais é claramente um projeto deste governo. Porém, é preciso reconhecer que, ao mesmo tempo, tal projeto enfraquecerá o papel estratégico do Brasil no cenário internacional, reduzindo sua capacidade de negociação no jogo diplomático do futuro climático.

Décio Semensatto é professor da Unifesp e pesquisador do SOU_CIÊNCIA