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Este texto é uma versão adaptada e resumida do discurso proferido pelo Professor Emérito da Universidade de Brasília, Isaac Roitman, no dia 16 de abril de 2024, durante o evento organizado pelo Centro SoU_Ciência, com o tema: “Universidades e Institutos na Ditadura”, debate promovido por ocasião dos 60 anos do Golpe Militar. O vídeo com a fala integral pode ser acessado clicando aqui. 

 

Meu depoimento é resultado da experiência pessoal, de 1964 a 1985, e da consulta, na literatura, a documentários e depoimentos.

Em 1964, quando ocorreu o golpe militar, eu estava iniciando meu doutorado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Me recordo da euforia de muitos no bairro de Copacabana, onde predominava a burguesia. Foi chocante. 

Por alguns anos, senti, vivi, a triste sensação de viver em um ambiente sem liberdade de expressão. Em 1967, fui à Nova Iorque, para fazer um pós-doutorado. Fiquei chocado e encantado com a liberdade de expressão nos Estados Unidos. Algumas semanas depois da minha chegada, eu estava na 5ª Avenida, perto do Rockefeller Center, onde ocorria uma manifestação sobre a Guerra do Vietnã. Nos Estados Unidos, é proibido fazer uma manifestação parada. Então havia uma manifestação circular, com manifestantes contra a guerra e outra em sentido inverso, a favor da guerra. Fiquei tão entusiasmado com essa liberdade de expressão, que entrei na passeata circular errada, a favor da guerra. 

Em 1972, decidi trabalhar na Universidade de Brasília (UnB), atraído pelas ideias de Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira. Naquela época, havia tido uma intervenção militar velada na Universidade. O ambiente e as conversas eram espionados por alguns professores e alguns estudantes a serviço dos órgãos de informação. 

Não era difícil identificar os informantes. Me dei conta de que a UnB estava vigiada, e que de 1964 a 1972, muitos eventos importantes ocorreram na Universidade de Brasília. Relato alguns deles. 

Em 9 de abril de 1964, nove dias depois do golpe, o câmpus foi ocupado pelos militares, que invadiram as salas de aula, procuravam armas e material subversivo. E, depois dessa invasão, o reitor Anísio Teixeira e o vice, Almir de Castro, foram demitidos. Assumiu a reitoria Zeferino Vaz. 

A segunda invasão aconteceu em 8 de setembro de 1965. O clima de apreensão tomou conta do câmpus, e foi deflagrada uma greve que foi uma resposta à demissão dos professores Ernani Maria Fiori, Edna Soter de Oliveira e Roberto Décio de Las Casas. “Afastados” por conveniência da administração.

O clima de apreensão tomou conta do câmpus, e outros docentes temiam ser demitidos de forma arbitrária. Nesse mesmo ano, no dia 11 de outubro, a UnB foi novamente invadida e, uma semana depois, o reitor demitiu 15 professores, alegando que eles eram responsáveis pelo ambiente de perturbação. Esses professores, segundo o reitor, haviam se manifestado de forma subversiva durante a assembleia, e Zeferino Vaz justificou as demissões como medida disciplinar. Entre os demitidos, estava Sepúlveda Pertence que, mais tarde, seria presidente do Supremo Tribunal Federal. 

Houve uma reação, sem planejamento, espontânea, e 223 dos 305 professores da Universidade demitiram-se em seguida. O professor Roberto Salmeron conta, em seu livro, A universidade interrompida: Brasília, 1964-1965, que os professores estavam fartos do clima de instabilidade que havia se instalado na universidade. A universidade que acabara de nascer perdia a maior parte dos cérebros selecionados para construir a instituição de vanguarda idealizada por Darcy e Anísio. 

Em 29 de agosto de 1968, a Universidade de Brasília foi alvo de uma nova invasão militar, que resultou no espancamento, na prisão e na tortura de estudantes, professores e funcionários. Sobre o pretexto de cumprir mandados de prisão contra estudantes, as forças policiais militares cercaram a universidade com viaturas e caminhões de choque. Centenas de soldados invadiram os prédios e as salas de aula com metralhadoras, fuzis e bombas de gás lacrimogêneo. Um dos grandes alvos da operação foi a Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília, considerada pela repressão uma organização repressiva paramilitar. As forças de segurança espancaram e prenderam o seu presidente, Honestino Guimarães. Cerca de 300 estudantes foram mantidos presos na quadra de basquete da universidade, que se transformou, segundo o relato dos próprios estudantes, em um campo de concentração. 

O estudante Valdemar Alves da Silva Filho foi baleado na cabeça e perdeu um olho. O estudante Honestino Guimarães, por punição, foi desligado da universidade. Em dezembro de 1968, ele saiu de Brasília e foi viver clandestinamente em São Paulo. Em 1971, no Congresso da UNE, realizado no Rio de Janeiro, ele foi eleito presidente da UNE. Transferiu-se para o Rio, onde continuou vivendo clandestinamente. Em outubro de 1973, foi preso pelo Centro de Informações da Marinha, após cinco anos de clandestinidade. Supõe-se que tenha sido transferido para o Pelotão de Investigações Criminais, em Brasília, onde sua mãe foi autorizada a visitá-lo no Natal. Mas, no dia da visita, disseram a ela que ele não estava ali. Seu desaparecimento foi denunciado pelos presos políticos de São Paulo em documento datado de 1976. Vinte anos depois, em 1996, o Estado reconheceu a responsabilidade por seu desaparecimento, quando a família Guimarães recebeu o atestado de óbito do estudante, emitido pelo Poder Judiciário do Rio de Janeiro, sem mencionar a causa da morte. Em abril de 2014, Honestino Guimarães foi oficialmente anistiado político, post mortem, pelo Governo Federal. O Ministério da Justiça determinou a retificação do atestado de óbito, para que contasse como causa da morte, “atos de violência praticadas pelo Estado”. Honestino foi declarado anistiado em setembro de 2013, em solenidade na Universidade de Brasília, onde estudou Geologia. Recentemente, foi aprovada a concessão de diploma acadêmico post mortem a Honestino, com previsão de entrega no dia 21 de abril de 2024 aniversário de 62 anos da instituição. 

No dia 25 de março de 1971, o professor e pesquisador Amadeu Kury assumiu a reitoria com uma proposta de reestruturação da Universidade. Iniciava-se a etapa de consolidação acadêmica e física da Universidade de Brasília. 

Mas o clima de reconstrução e calma durou poucos anos. Com a posse do professor, Doutor em Física e oficial da Marinha, José Carlos de Almeida Azevedo, em maio de 1976, as manifestações recomeçaram. Um ano após a mudança na reitoria, multiplicaram-se os protestos de alunos contra a má qualidade de ensino, a ociosidade nos laboratórios e a falta de professores. 

A crise política da Universidade de Brasília ultrapassou os limites do câmpus. O Senado criou uma comissão para interferir no conflito. Cerca de 150 professores entraram como mediadores entre a reitoria e os estudantes. É importante registrar o papel da Associação de Docentes da Universidade de Brasília, a ADUnB. Em 24 de maio de 1978, 115 professores e professoras firmaram o compromisso de se unirem em defesa da luta pela democracia e pelos direitos da categoria docente. Uma das principais bandeiras da ADUnB era a conquista de um ensino público de qualidade.

A criação da ADUnB foi muito difícil. Principalmente por sua presença no centro de poder militar da época. Apesar de todos os golpes contra qualquer que fosse a reunião que desagradasse as forças militares, as universidades representavam uma forte ameaça àquele desgoverno. A ADUnB foi portanto um ato de bravura dos professores da Universidade de Brasília, porque o câmpus era controlado por militares desde a entrada até a reitoria, significando que o autoritarismo estava presente na universidade.

Outro registro importante ocorreu em 26 de agosto de 1977. Nessa data, foi realizada uma reunião do Conselho Universitário, que deliberou pela expulsão e suspensão de aproximadamente 60 estudantes da universidade por serem contra a ditadura militar. Na ocasião, apenas seis integrantes do Conselho votaram contra a medida. Quatro estudantes, o então vice-reitor Marco Antonio Rodrigues Dias, que mais tarde e durante muitos anos foi diretor de Ensino Superior da Unesco, em Paris, e o outro que votou contra foi o professor José Carlos Córdova Coutinho, que à época dirigia a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo e hoje é Professor Emérito da Universidade de Brasília. Para Marco Antonio Rodrigues Dias, muitos dos integrantes do Conselho Universitário estavam aterrorizados e com medo de serem demitidos se votassem contra a punição dos estudantes de uma medida que, além de ter um aspecto político, era ilegal. 

Em agosto de 2012, foi criada a Comissão Anísio Teixeira de Memória e Verdade da Universidade de Brasília. O grupo formado por professores e ex-estudantes da UnB foi instituído no contexto de criação de comissões estaduais e setoriais que seguiam a instituição da Comissão Nacional da Verdade, estimulando o processo da justiça de transição do Brasil.

Entre agosto de 2012 e abril de 2015, a Comissão Anísio Teixeira investigou as violações de Direitos Humanos e liberdades individuais ocorridas entre 1° de abril de 1964, data do golpe militar, e que se seguiu da imediata intervenção de tropas na universidade, até 5 de outubro de 1988, dia de promulgação da Constituição democrática brasileira.

Durante mais de dois anos e meio, a Comissão colheu depoimentos de docentes e estudantes perseguidos, analisou a extensão da documentação do Arquivo Nacional e de outros acervos e realizou audiências públicas. Entre os casos emblemáticos analisados pela Comissão estão o de Anísio Teixeira, reitor da UnB afastado do cargo pelos militares e morto em 1971 em circunstâncias cuja elucidação policial tem sido questionada. Também foi analisado o desaparecimento de Honestino Monteiro Guimarães, Paulo de Tarso Celestino da Silva e Ieda Santos Delgado.

Finalmente, gostaria de registrar e divulgar uma obra importante do notável cineasta Vladimir de Carvalho, o documentário Barra 68: sem perder a ternura. Nesse documentário, é possível acompanhar a criação da Universidade de Brasília e as inovações que ela propunha, e as perseguições iniciadas com o Regime Militar de 1964 até a invasão militar de 1968. O documentário é narrado por Othon Bastos e conta com depoimentos de Oscar Niemeyer, Roberto Salmeron, Jean-Claude Bernardet, Luis Humberto Pereira, Darcy Ribeiro, Ana Miranda, Marcos Santilli, Cacá Diegues, José Carlos de Almeida Azevedo, familiares de Honestino Guimarães, entre outros.

As invasões só acabaram com o início da abertura política no Brasil. A democracia na universidade, a retomada em 1985, com a eleição do reitor Cristovam Buarque. Na nossa frágil democracia, a luta dos estudantes e professores contra a ditadura, que parece longínqua no tempo, deve ser evocada como uma memória viva, uma lembrança e um alerta de que uma constituição democrática, com todas as suas imperfeições e limitações, foi duramente conquistada. Em muitos momentos, nos deparamos com o autoritarismo oportunista e, portanto, a manutenção da constituição de 1988, além de desejável, é necessária para que se possa lutar por igualdade, liberdade e para termos um Brasil melhor e mais justo.