Incêndio no galpão da Cinemateca Brasileira: o descaso com a cultura e com o patrimônio brasileiro, numa espécie de “Crônica de uma morte anunciada"
Por Gabriela de Brelàz
Em 1981, Gabriel Garcia Marques, prêmio Nobel da Literatura (1982), publicou uma crônica, intitulada Crônica de uma Morte Anunciada, que conta a saga de Santiago Nasar. Ele tem sua morte amplamente anunciada pelos irmãos de Angela Vicário, um dia após seu casamento com Bayardo San Roman.
Com toda a riqueza do realismo mágico de Gabo, cria-se uma história incrível, assim como toda a sua obra. O título virou expressão e, muitas vezes, quando algo acontece da maneira como já sabíamos que aconteceria, falamos...crônica de uma morte anunciada.
O incêndio do galpão da Cinemateca Brasileira, localizado na Vila Leopoldina, zona Oeste de São Paulo, se encaixa nesta expressão. Infelizmente, no caso do incêndio da cinemateca temos uma triste verdade, nada mágica ou fantasiosa, de uma TRAGÉDIA anunciada, que destruiu um valioso e importante acervo documental, audiovisual e de equipamentos, além de mobiliário de cinema, fotografia e processamento laboratorial.
Claramente, estamos falando de um equipamento público e que pelas apurações e informações destacadas, como a ação civil pública já ajuizada pelo Ministério Público Federal contra a União, manifesto publicado pelos seus ex-funcionários, que já anunciavam o risco de um incêndio, notícias da imprensa nacional e internacional, entre outros, não estava tendo o acompanhamento e a gestão necessária para garantir o seu pleno funcionamento e a preservação de seu acervo.
Ainda em análise sobre o que foi destruído, já sabemos que o valor é irreparável e imensurável. Um descaso criminoso com a cultura e com o patrimônio público brasileiro.
Relendo a crônica de Garcia Marques, que tinha lido cerca de 10 anos atrás na 1ª edição que herdei da biblioteca da minha avó, um original de 1981, e à medida que ia revisitando a história, naturalmente, um filme se passava na minha cabeça. Livros se transformam em filmes e a potência do cinema e do audiovisual, em geral, em nos tocar, emocionar, indignar, ajudar a ressignificar, educar e contribuir com nosso crescimento como seres humanos é única. Cinema é arte, é história, é comportamento, é conhecimento, é cultura, é educação e é parte do que nos constitui. A Cinemateca Brasileira protege esta história, sendo importante patrimônio público que deve ser mantido e garantida a sua preservação.
A ausência de recursos públicos nos últimos anos e a desvalorização da Cultura em nosso país é gritante com as últimas mudanças nas políticas culturais e com o fim do Ministério da Cultura, que se tornou uma secretaria subordinada, primeiramente, ao Ministério da Cidadania e, após, ao Ministério do Turismo. Fundamental também destacar a não renovação do contrato de gestão com a associação que o mantinha ou a criação de uma nova política que garantisse o funcionamento, a conservação e o desenvolvimento da Cinemateca Brasileira, avaliando prós e contras de modelos anteriores. Uma série de equívocos que foi, aos poucos, fechando a cinemateca, que deixou de ter programação e de servir ao público, além da questão do descaso irresponsável com os acervos. Em tempos de crescimento vertiginoso de plataformas de streaming devido à pandemia, se houvesse gestão, a cinemateca poderia ter criado uma programação virtual e transmitido cultura aos seguidores de audiovisual com seu riquíssimo acervo. Contudo, nada foi feito. Intolerável aceitar a desculpa de escassez orçamentária, pois, há recursos para emendas bilionárias de relator do orçamento no Congresso Nacional, para aposentadorias especiais de categorias simpáticas ao governo e para salários extra teto. Orçamento público é feito com base em escolhas. Aqui, é fundamental ressaltar que o(s) governo(s) te(ê)m responsabilidades legais. No artigo 23 da nossa Carta Magna, Constituição Federal de 1988, observamos que:
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
I - zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público;
Ao ler o artigo 23, é impossível não ampliar o escopo desta análise e reflexão. Temos uma crônica de uma morte/tragédia anunciada em relação ao (i) zelo pela Guarda da Constituição, em relação ao (ii) zelo pelas leis e instituições democráticas e, como visto, com o terrível incêndio, com a (ii) conservação do patrimônio público.
Diferentemente do gênero de crônica do conto de Garcia Marques, o que vemos no Brasil não se resume a um simples conto, pois, vemos diariamente um sucedâneo de cenas e situações que mais nos remetem a uma novela, seriado, ou thriller de terror com capítulos sequenciais que só aumentam em termos de violência e de descaso com o povo brasileiro e com a saúde, com a educação, com a cultura e com a ciência do nosso país. Importante destacar que a Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) teve convênios com a cinemateca e que contribuíram para a realização dos projetos Cultura nas Escolas e Cultura nas Universidades. Estes acordos, à época, também ajudaram no processo de conservação do acervo.
As chamas do incêndio no galpão da Cinemateca Brasileira gritaram diante dos nossos olhos, repercutiram nacional e internacionalmente. Mas, não nos esqueçamos que diariamente temos outros exemplos de descaso que corroem silenciosamente e destroem políticas públicas (por ausência de recursos) e o patrimônio nacional. Refiro-me ao patrimônio histórico brasileiro que sofre constante deterioração de equipamentos e públicos como escolas, hospitais, universidades e instituições públicas de pesquisa. Dia a dia, a falta de custeio e investimentos deteriora estes equipamentos que são tão essenciais para a realização do dever do estado brasileiro de garantir saúde, educação e políticas sociais, entre outros. Infelizmente, não podemos olhar para estes fatos como se fosse um conto de realismo mágico, pois trata-se de uma realidade / verdade visível a olho nu e que demoraremos décadas para recuperar. Esta história de terror tem que acabar.
Profa. Dra. Gabriela de Brelàz, professora da Escola Paulista de Política Economia e Negócios Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e SOU_CIÊNCIA