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Histórias relacionadas ao tema da lista tríplice dos reitores, novamente em debate no país

Por Saul Tourinho Leal

Somos feitos de histórias. E a história da ADI 6565, de relatoria do ministro Edson Fachin, ajuizada pelo Partido Verde perante o Supremo Tribunal Federal, precisa ser contada. O caso está pautado para julgamento virtual a partir do dia 1º de outubro. Trata da nomeação do professor mais votado na lista tríplice entregue, pelos campi das universidades federais, ao presidente da República, para nomeação no honroso cargo de reitor.

Professores e reitores deram e seguem dando a vida por esse país. Em 1968, o reitor da UFRJ, Pedro Calmon, barrou policiais que tentavam invadir a Faculdade Nacional de Direito, no Centro da cidade do Rio. "Policial só entra na universidade se fizer vestibular", advertiu Calmon, com a extraordinária autoridade moral que tinha.  

Outro episódio conhecido se deu com o saudoso Paulo Brossard, que foi ministro do STF e foi expulso da Universidade Federal do Rio Grande do Sul onde, em 1965, começou a lecionar, sem remuneração, tendo lá permanecido por sete anos.1

Ainda na Ditadura Militar, Sepúlveda Pertence, também ministro aposentado do STF, foi demitido da UnB.

Pedro Calmon, Paulo Brossard e Sepúlveda Pertence são personagens públicos que, no tema abordado pela coluna hoje, viveram a verdade e percorreram o caminho, construindo as muitas histórias que, juntas, ensejaram a constitucionalização, em 1988, da autonomia universitária no Brasil. É preciso honrar ideais tão elevados como esse.   

Moisés Naím, em O Fim do Poder, anteviu tudo: "(...) aqueles que controlam o poder deparam-se cada vez com mais restrições ao que podem fazer com ele". E concluiu: "No século XXI, o poder é mais fácil de obter, mais difícil de utilizar e mais fácil de perder".2

O histórico legislativo disciplinador da nomeação dos reitores de universidades federais torna o diagnóstico de Naím profético, pois indica o curso de uma postura que se iniciou sem limitação do poder do presidente da República no processo de nomeação. Depois, com a lei 6.420/77, o art. 16 da lei 5.540/68 passou a estipular uma lista sêxtupla. Com a lei 9.192/95, reduziu-se ainda mais a discricionariedade. A lista passou a ser tríplice. Atualmente, na lei 11.892/2008, que institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, sequer lista há.3 A trajetória prova a redução do espaço de discricionariedade do Presidente.

Em verdade, a ADI 6565 não se volta ao poder do presidente da República. Visa, em seu conteúdo, manter as conquistas dos campi, do alicerce cívico de um país crente na educação. Não se dedica, ela, aos palácios, mas às cidades universitárias. Discute a realização, pelo Presidente, quando invocando o art. 84, II da Constituição, da autonomia universitária.

A realização da Constituição, a partir da sua aplicação por quem tem competência para tal, se dá também pela intermediação legislativa, que, na espécie, nasce a partir do que se chamou "Reforma Universitária de 1968", com o advento da lei Federal 5.540/68, ora em discussão, com suas alterações.

A Ditadura Militar nomeava os reitores autorizada pelo art. 16, I da lei Federal 5.540/68, com a redação dada pela lei Federal 6.420/77. Os anos foram esses: 1968 e 1977. No primeiro, nasceu o Ato Institucional nº 05. No outro, fechou-se o Congresso.

O ministro Gilmar Mendes recorda que, em 1968, ocorreu "A invasão mais violenta" num campus universitário no país. "Os alunos protestavam contra a morte do estudante secundarista Edson Luis de Lima Souto, assassinado por policiais militares no Rio de Janeiro. Cerca de 3 mil alunos reuniram-se na praça localizada entre a Faculdade de Educação e a quadra de basquete. Esse foi o estopim para o decreto da prisão de sete universitários, entre eles, Honestino Guimarães"4, registrou o Ministro, referindo-se à UnB.

O ministro Gilmar Mendes rememora ainda que, "em 6 de junho de 1977, tropas militares invadiram a UnB, prenderam estudantes e intimaram professores e funcionários".5 O Ministro traz a obra de Roberto Salmeron, A universidade interrompida: Brasília 1964-1965, na qual anota que, na Ditadura Militar, "os professores estavam fartos do clima de instabilidade que havia se instalado na Universidade". E prossegue com a citação: "'Chegara o momento em que devíamos escolher com lucidez entre somente duas alternativas: aceitar as interferências externas ou recusá-las', lembra. Cerca de 80% dos professores decidiram recusar. Em 18 de outubro a Universidade que acabara de nascer perdia a maior parte dos cérebros selecionados para construir a instituição de vanguarda idealizada por Darcy Ribeiro."6

O tempo cumpriu seu destino, 1988 chegou e, com ele, a constitucionalização da autonomia universitária aconteceu. Nesse particular, vale trazer trecho do ministro Edson Fachin, em voto na ADPF nº 548: "A autonomia da universidade é garantia constitucional máxima. Pétrea. Ela destina-se a impedir que o Estado substitua a própria universidade para indicar o que pode ou o que não pode ser debatido nesse ambiente. O que debater, como debater, quando debater são decisões que não estão sujeitas ao controle estatal prévio."7

A compreensão da autonomia universitária como sendo uma garantia institucional expressamente prevista na Constituição de 1988 existe para se preservar as instituições contra predadores antirrepublicanos. Para Paulo Bonavides, "a garantia institucional não pode deixar de ser a proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade (...)".8 Ele recorda os juristas da República de Weimar, como Klaus Stern, que enxergam na garantia institucional "o reconhecimento de que determinadas instituições jurídicas devem ser resguardadas de uma supressão ou ofensa ao seu conteúdo essencial ou esfera medular, por parte do Estado, sobretudo do legislador".9

Instituição alguma pode ter o seu destino definido pelo apetite dos presidentes da República. Eles passam e as instituições permanecem. Daron Acemoglu e James Robinson sustentam que o sucesso ou o fracasso das nações depende da qualidade de suas instituições. "Se a distribuição de poder for estreita e irrestrita, as instituições políticas serão absolutistas", anotam, referindo-se às instituições extrativistas. "Em contrapartida, as instituições políticas promotoras de ampla distribuição de poder na sociedade e sujeitas às suas restrições são pluralistas. Em vez de ser investido em um único indivíduo ou grupo limitado, o poder político é depositado nas mãos de uma coalizão ampla ou uma pluralidade de grupos"10.

É urgente reconhecer a eficácia do dispositivo constitucional que institui a autonomia universitária, capaz de preservar seu núcleo essencial contra invasões destituídas de interesse público por parte do presidente da República, que, num turning point, revogou a norma anteriormente aplicável à espécie - nomeação do mais votado da lista - e, sem fundamento, tampouco sem demonstrar estar esse novo comportamento a realizar melhor a autonomia universitária, passou a nomear os menos votados, aqueles que saíram derrotados dos campi.

Para Paulo Bonavides, a "garantia institucional visa, em primeiro lugar, assegurar a permanência da instituição, embargando-lhe a eventual supressão ou mutilação e preservando invariavelmente o mínimo de substantividade ou essencialidade, a saber, aquele cerne que não deve ser atingido nem violado, porquanto se tal acontecesse, implicaria já o perecimento do ente protegido".11

Essa autonomia jamais se constituirá sob a forma de soberania. Mesmo reconhecendo-se a nulidade das nomeações do presidente Jair Bolsonaro que, sem qualquer fundamentação, quebraram a norma vigente que assegurava o mais votado na lista tríplice, as universidades seguem submetidas aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência (art. 37 da Constituição). Estão vinculadas aos comandos constitucionais dos servidores públicos e dos concursos públicos. Sujeitam-se às regras licitatórias de contratação, à atividade regulatória do Ministério da Educação, à atuação da CGU, do Congresso Nacional, do Tribunal de Contas da União e à feitura de convênios e ao estabelecimento de metas de gestão. Submetem-se à inclusão na lei orçamentária anual e no orçamento fiscal das entidades da Administração Indireta.

Emprestar reconhecimento republicano ao resultado das eleições ocorridas no seio dos campi, em nada arrasta, para as universidades, o conceito de soberania. Apenas um país, à luz da Constituição, é soberano.12 Universidade alguma jamais será.

Nessa discussão, a ADI 51 tem aparecido como precedente para o deslinde do debate, a partir da liderança do ministro Paulo Brossard, o que resultaria, na prática, num aval jurisprudencial para que o Presidente siga nomeando as lideranças das universidades federais como vem fazendo, promovendo vetos aos vitoriosos e premiando os derrotados.

A história desse precedente também merece ser contada.

Em 23/05/1989, foi ajuizada a ADI 51, pelo eminente Procurador-Geral Aristides Junqueira, cuja relatoria coube ao ministro Paulo Brossard. Questionava ato do Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Resolução nº 02/88).

Dois dias depois, a cautelar foi concedida, num voto de uma página, diante da iminência das eleições na Universidade. A composição do Supremo era a seguinte: ministros Néri da Silveira - Presidente -, Aldir Passarinho, Francisco Rezek, Sydney Sanches, Octavio Galloti, Carlos Madeira, Célio Borja, Paulo Brossard e Sepúlveda Pertence.

O art. 1º da Resolução dispunha: "O Reitor e o Vice-Reitor da UFRJ serão escolhidos em processo de eleição direta pelos docentes, servidões técnico-administrativos e estudantes". Eis o parágrafo único: "O processo eleitoral iniciar-se-á e encerrar-se-á no âmbito da UFRJ". Por sua vez, o art. 3º: "Os candidatos a Reitor e a Vice-Reitor vencedores da eleição serão empossados pelo Conselho Universitário".  

A página 12 do acórdão do julgamento de mérito, de 25/10/1989, esclarece o que de fato estava em julgamento: "6. De forma contrária estabeleceu a resolução nº 2. Por ela o reitor e o vice-reitor são escolhidos com exclusão, total e absoluta, de qualquer participação do Presidente da República; são empossados pelo Conselho Universitário; a escolha não se fará de listas sêxtuplas, mas mediante pura e simples; o colégio eleitoral, previsto no art. 8º, de outro lado, não é o previsto na lei 6.420, artigo 16, I, e 1º."

Ou seja, o presidente da República deixou de participar da nomeação dos reitores e vice-reitores. Todo o processo se esgotava na Universidade. Sequer lista havia. O ato, complexo, deixou de sê-lo. Tudo feito por ato interno da Universidade, em violação à lei de regência, que é a mesma ora questionada. Tanto que uma das inconstitucionalidades foi de natureza formal, por violação à reserva de lei. Anotou o relator, ministro Paulo Brossard: "a Universidade não podia e não pode revogar a lei federal, ao dispor de maneira diferente quanto à escolha da lista sêxtupla e a nomeação do Reitor, o que lhe escapa por inteiro de sua competência, por ser da União" (p. 17). O caso é absolutamente distinto da ADI nº 6565.

O ministro Sepúlveda Pertence, mesmo seguindo o Relator, fez uma ressalva: "(...) Deixo ressalvado, entretanto, o exame mais profundo da questão e das implicações da autonomia universitária, constitucionalmente garantida, em relação ao poder presidencial de provimento dos cargos federais, em geral, e as leis vigentes sobre provimento das reitorias".

Ou seja, transformar o julgamento da ADI 6565 numa oportunidade para ampliar o poder do presidente da República, quando, na verdade, o que se pediu foi a manutenção da autonomia universitária, é desconsiderar o princípio do pedido a ponto de apreciar o feito trazendo o art. 84, II da Constituição, isoladamente, para esse juízo, conferindo-lhe leitura capaz de dotar o Presidente da possibilidade de agir alheio aos fundamentos determinantes necessários ao controle dos seus atos. Seria, no alerta do ministro Gilmar Mendes, feito noutro caso, "uma esquisita compreensão do princípio de justiça, que daria ao postulante 'pedra ao invés de pão' (Stein statt Brot)".13

Em resumo, o art. 84, VI, que diz competir ao Presidente da República estruturar e organizar o funcionamento dos órgãos e das entidades vinculadas ao Poder Público federal, não existe, do ponto de vista hermenêutico, fora de uma leitura estruturante e republicana da Constituição.

Por isso, o STF deve conferir interpretação conforme a Constituição aos dispositivos legais submetidos à sua jurisdição (art. 1º da lei Federal 9.192/95 e art. 1º do decreto Federal 1.916/96), para, mantendo o regramento do processo de formação das listas, anular, imediatamente, todas nomeações do atual presidente da República para os postos de reitor que não tenham recaído sobre os mais votados das listas, sendo esses imediatamente nomeados e determinando-se, para o futuro, a nomeação, exclusivamente, dos mais votados.

Saul Tourinho Leal é doutor em Direito Constitucional pela PUC/SP e Fellowship, da Universidade de Pretória, na África do Sul

Texto original no site Migalhas, vide link

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1 Disponível aqui.

2 Naím, Moisés. O Fim do Poder: Como os novos e múltiplos poderes estão mudando o mundo e abalando os modelos tradicionais na política, nos negócios, nas igrejas e nas mídias. São Paulo: Leya, 2019, p. 49.

3 Segundo o art. 12, os Reitores serão nomeados pelo Presidente, para mandato de 4 anos, permitida uma recondução, após processo de consulta à comunidade escolar do respectivo Instituto Federal, atribuindo-se o peso de 1/3 para a manifestação do corpo docente, de 1/3 para a manifestação dos servidores técnico-administrativos e de 1/3 para a manifestação do corpo discente.   

4 Voto do ministro Gilmar Mendes na ADPF nº 548 (DJe 09/06/2020).

5 Antônio Ramaiana, autor do livro UnB 1977: O Início do Fim.

6 Voto do ministro Gilmar Mendes na ADPF nº 548 (DJe 09/06/2020).

7 Visava a evitar e reparar lesão a preceitos fundamentais resultantes de atos do Poder Público tendentes a executar ou autorizar buscas e apreensões, assim como proibir o ingresso e interrupção de aulas, palestras, debates ou atos congêneres e promover a inquirição de docentes, discentes e de outros cidadãos que estejam em local definido como universidade pública ou privada.

8 Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 26ª edição, 2011, p. 537.

9 Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 26ª edição, 2011, p. 539.

10 Acemoglu, Daron. Por que as nações fracassam: as origens do poder, da prosperidade e da pobreza/Daron Acemoglu e James A. Robinson; tradução Cristiana Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 85.

11 Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 26ª edição, 2011, p. 542.

12 Segundo o inciso I do art. 1º da Constituição, um dos fundamentos da República é a "soberania".

13 Necessidade de Desenvolvimento de Novas Técnicas de Decisão: Possibilidade da Declaração de Inconstitucionalidade sem a Pronúncia de Nulidade no Direito Brasileiro, conferência Congresso Luso-Brasileiro de Direito Constitucional, Belo Horizonte, 04/12/1992, p. 22.