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Balbúrdia real ou imaginada estigmatiza instituições públicas para parcela da população

Nas pesquisas que estamos realizando pelo SoU_Ciência sobre a percepção das universidades públicas pela sociedade brasileira, um dos levantamentos abordou a propagação da palavra Balbúrdia nas redes sociais e manifestações de rua, coletando reações após o pronunciamento do então Ministro Weintraub em 30 de abril de 2019 para justificar cortes no orçamento de universidades federais. No nosso levantamento, mais amplo e em elaboração, um post do Facebook destacou-se muito acima dos demais, com 400 mil curtidas, 78 mil comentários e 132 mil compartilhamentos.

Tratava-se de um post do grupo humorístico Porta dos Fundos com o vídeo intitulado “Balbúrdia”, um esquete que apresentava o que supostamente ocorreria em uma sala de aula de universidade federal. Esse vídeo teve 11 milhões de visualizações no Facebook e 4,4 milhões no Youtube (número superior aos 8,5 milhões de estudantes matriculados em ensino superior no Brasil) e recebeu elogios de bolsonaristas e anti-bolsonaristas. Em tempos de forte polarização ideológica, como essa unanimidade foi possível? 

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O vídeo, de 3 minutos, mostra um estudante calouro (Rafael Portugal) no curso de filosofia de uma universidade federal, surpreendido com o primeiro dia em sala de aula. O professor (Fábio Porchat) é não-binário, com a barba por fazer, cabelos curtos, usa batom e brincos e carrega uma bolsa. Entra na classe passando por um pôster de Karl Marx, e pede aos alunos: “todo mundo pelado e colocando o dedo no c. do colega ao lado”. Um grupo de alunos grita "Uhu!" "Quem trouxe a maconha e a seda que eu pedi na lista?" pergunta o professor, enquanto os alunos acendem uns baseados. O calouro incrédulo, homem branco, hetero e de classe média chama a atenção do professor: "Desculpa, a gente não veio aqui para estudar Sócrates e Platão?”. O professor responde: “Aqui é federal. Aqui, a gente estuda truco, siririca, textões de Facebook. Pensador pra gente é Marcelo D2, Inês Brasil. Essa gente [Sócrates e Platão] até pode ser, mas depois da aula de Travesti II, tá?”. Enquanto a cena estiliza os estigmas colocados nas universidades públicas pela nova direita, o estudante cético se transforma: “Agora entendi”, diz ele – “então, estudei errado minha vida inteira. Eu até amava minha família... Mas depois da doutrinação eu entendi! A gente tem que enaltecer os quilombolas e dar o cu! Me dá algo para cheirar!”. E veste uma camiseta de Che Guevara e um capuz de zapatista. Outra aluna diz: “Eu passei no ENEM para organizar sueca, choppada e cagar no crucifixo”. O episódio termina com o professor e alunos se preparando para uma manifestação de rua, todos usando bandanas na cabeça com “Lula Livre”: “Coquetéis molotov na mão e vamos jogar menstruação na cara de homem hetero”, comanda o professor. “E lembra: se alguém vier perguntar, a gente está defendendo a educação, é contra contingenciamento”. Em um epílogo, o mesmo estudante da federal agora formado, passa por uma entrevista de emprego, em que mostra suas habilidades em tirar cartas e dançar passinhos de coreografia sensual.

O texto que acompanha o vídeo no post começa assim: “O Ministro da Educação nem imagina que aquela farinha jogada nos calouros das federais é, na verdade, a famosa Cocaína 99 da boca do Fallet, que com uma única cheirada transforma qualquer aluno em travesti...”. O vídeo é forte, politicamente incorreto, cheio de palavrões e foi posteriormente reclassificado no Youtube para maiores de 18 anos. Ou seja, teria tudo para despertar críticas e protestos. Mas nos milhares de comentários ao post em que foi veiculado, ele recebe elogios de pessoas com posições políticas radicalmente opostas. As repostagens também foram feitas por grupos completamente diferentes: do próprio Marcelo D2, DCM, Militantes de Esquerda, Juventude do PT, Print Feminista e Vidas Negras importam ao outro espectro com Canal da Direita, Pacto contra o PT, Liberais Antilibertários, Bolsonaro 100%, Analfabeto Político, Apoio à Lava-Jato, Bolsonaro 2018 Mito etc.  

Os bolsonaristas elogiam o quadro e o surpreendente caráter “documental” do vídeo, expressando: “é assim mesmo, era para ser ironia?”, “é uma vergonha”, “tem mesmo que cortar a verba”, “essa a verdadeira face das universidades públicas”, “a realidade é uma piada”, “como não rir destes petistas?” etc. Já os anti-bolsonaristas lembram que é um esquete de humor, que o Porta estaria ironizando o imaginário de ódio e ressentimento da direita sobre o que é a universidade pública, mas que a universidade real obviamente não é assim.

Levantamentos de opinião pública do SoU_Ciência e grupo focal recém realizados pelo Centro de Estudos comprovaram que a visão sobre a universidade pública é gritantemente distinta entre bolsonaristas (que avaliam o governo como ótimo ou bom) e anti-bolsonaristas (que avaliam como ruim ou péssimo). Enquanto estes últimos retratam a universidade pública como espaço de ensino qualificado e de pesquisa científica, os bolsonaristas consideram que as instituições públicas são lugares de doutrinação, esquerdismo, politicagem, bebedeira, drogas, balbúrdia e pouco estudo. Veja estudo aqui.

Análise de redes sociais em desenvolvimento também pelo SoU_Ciência evidenciam essa polarização e disseminação de narrativas de que é feita uma “lavagem-cerebral” nos estudantes nas universidades públicas, como vemos neste post de Luciano Hang, de dezembro de 2019, que alcançou 103 mil curtidas:

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O grupo focal, aprofundando o estudo qualitativo sobre o tema, com 6 participantes com perfil adverso às universidades públicas, reiterou a narrativa da universidade degenerada (com seus participantes afirmando a veracidade desse post de Hang, por exemplo). Com essa narrativa, os participantes do grupo defendem e apoiam os cortes de recursos das universidades públicas, a sua privatização e até mesmo o fechamento dessas instituições. Para eles, a universidade pública encarna, em sua fabulação regressiva, o mal absoluto, um caldeirão de hedonistas e pederastas perigosos que devem ser banidos e suas instituições extintas ou privatizadas, para que sejam limpas moral, ética e fisicamente.

A definição de um inimigo imaginário ou caricato a ser eliminado é uma operação política e mental típica do fascismo e do nazismo. Trata-se de uma regressão paranoica, que exala rancor, ódio e teorias conspiratórias, mas que tem uma base material importante: parcela significativa da população brasileira realmente não sabe o que se faz nas universidades públicas (36% da população, segundo pesquisa já comentada no nosso site). Com isso, há uma parcela significativa da sociedade mais vulnerável a ser enganada pelas correntes de desinformação e ódio.

Afinal, se uma sala de aula de “federal” fosse como retratado pelo vídeo do Porta dos Fundos, se de fato ninguém estudasse seriamente e só existisse farra e ativismo, como seria possível essas mesmas instituições ocuparem o topo de todos os rankings nacionais e internacionais de ensino e pesquisa de instituições superiores? Ao apresentarmos dados dos rankings que comprovam essa afirmação (publicados pela Times Higher Education-THE, das 10 melhores universidades brasileiras, citando que 8 são públicas), a reação do grupo focal foi unânime: “isso é mentira”, “fakenews!”. Simplesmente os seis entrevistados não acreditaram no ranking THE.

A desinformação e a fabulação são parte de uma guerra no campo do simbólico e do psíquico com finalidade política. Uma afirmação reiterada pelos detratores das universidades públicas (como o bolsonarismo, o olavismo e o neoliberalismo) estimula falsificações da realidade e reações de raiva e ressentimento ao que entendem como ameaça. Ao estudar as diversas clivagens desse imaginário fantasioso ou caricato, suas narrativas e diferentes perfis sociais, nosso objetivo é melhor compreender o que motiva o ódio contra as universidades públicas e, dentro disso, o ataque à política de cotas, ao progressismo cultural e às humanidades.

[Pedro Arantes é professor da Unifesp e pesquisador do SoU_Ciência]