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A pandemia forçou as instituições de ensino a recorrerem aos planos de emergência ancorados em modelos de ensino remoto, o que demandou refletir sobre a educação no futuro

Por Romualdo Portela de Oliveira

A emergência da crise sanitária gerada pela COVID-19 forçou as instituições de ensino a recorrerem, em maior ou menor grau, aos planos de emergência ancorados em modelos de ensino remoto. Presenciamos vasta gama de improvisos, na maioria das vezes não bem sucedidos. Parte relevante do debate foi ocupado deplorando-se a precariedade das alternativas de ensino remoto em implantação, seja pela falta de preparação para tal de professores, alunos e escolas, seja pela falta de infraestrutura adequada, acesso a computadores, tablets, redes de wifi etc, resumidos no argumento de que tais experimentos não teriam condições de substituir a educação presencial com qualidade. Em seguida, enveredou-se pela apreciação das condições adequadas para o retorno às atividades presenciais, frente aos evidentes prejuízos educacionais que o fechamento das escolas causa.

É verdadeira a constatação de que essa crise aumentou a desigualdade educacional em decorrência do aumento da desigualdade social, posto que alguns tenham acesso aos meios eletrônicos que permitem continuar aprendendo, ainda que com limites, e muitos não. Também é verdade que a simples negação de alguma ação durante o período de quarentena e fechamento das escolas seja alternativa suficiente. Sabe-se que a escola pode ser um meio de redução da desigualdade, mesmo que nem sempre o seja, podendo reproduzi-la e mesmo amplificá-la.

Entretanto, sem escola, a desigualdade social aumenta a desigualdade de resultados educacionais. Exemplos de períodos prolongados de fechamento de escolas em decorrência de catástrofes naturais, como os eventos decorrentes do furacão Katrina em Nova Orleans, evidenciam isso. É importante mencionar que, nesses momentos, aumenta a retórica de que a privatização de tudo é a solução. Assim sendo, sem escola e sem tentativas de supri-la, ainda que parcialmente, por meios remotos, amplia-se a desigualdade educacional.

Mais do que negar a validade do uso de plataformas de ensino digital, a conjuntura demanda o aumento da inclusão digital, por meio de wifi livre, gratuito e público nas cidades, por fornecimento de tablets para os estudantes como parte de seu material escolar básico, etc. O que se demanda é mais tecnologia, não menos.

Esta é a faceta conjuntural do debate. Há outra, mais permanente, que precisa ser objeto de análise. Passada a quarentena, não será mais possível desconhecer o potencial que as tecnologias apesentam ao ensino. Isso traz três importantes novidades ao debate educacional. Em primeiro lugar, o aumento da tecnologia trará mudanças na forma como se realiza o processo educacional. Em segundo lugar, os efeitos poupadores, decorrentes do recurso a atividades remotas, acentuam tendências de precarização do trabalho docente, já incipientes no momento. E em terceiro, porque o funcionamento dos sistemas educativos tende a mudar e a recrudescer o apetite dos empresários da educação por mais lucros e mais negócios.

Portanto, compreender o que está acontecendo é condição sine qua non para qualificar a luta dos trabalhadores da educação e da população para defender e garantir o direito à educação de qualidade para todos. De imediato, há que se afastar das posições extremas, posto que dialogam pouco com as nuances do novo cenário. De um lado, a que recusa qualquer forma de ensino não presencial e, de outro, a de posições acríticas de aceitação.

Iniciemos pelos argumentos da rejeição. A mais comum talvez seja a que defende a imprescindibilidade da presença física do professor e do grupo de colegas. O argumento parece-me parcialmente verdadeiro. Se uma parte do processo educativo é interacional e afetivo, transcendendo o racional, envolvendo dimensões não cognitivas, a presencialidade é fundamental. Da mesma forma, a interação individualizada é parte intrínseca do processo educativo. Entretanto, parece cabível argumentar que parte da educação prescinde disso. Esse elemento pode ser abordado a partir da separação do processo educativo entre informativo e formativo, ainda que seja possível arguir certa indissociabilidade entre ambos.

A informação está muito mais disponível na sociedade atual e seu acesso mais democratizado do que jamais esteve. Dessa forma, não é possível supor a escola como a principal (menos ainda a única) fonte de informação para os estudantes. O problema está no desenvolvimento de critérios que permitam triar, julgar e interpretar tal informação. Nesse particular, a interação com um professor é importante, ainda que não seja imperativo que essa interação seja presencial. Parece razoável admitir-se que a alternativa híbrida seja aceitável sem impacto substantivo na qualidade do ensino. Ressalte-se que naquelas etapas do processo educativo que demandem mais interação, afetividade e contato físico, a possibilidade de tecnologias no ensino é mais complexa, senão impossível, como no caso da creche e mais difícil na pré-escola do que no ensino fundamental e assim por diante.

A segunda questão refere-se às possibilidades de poupança de mão de obra e de desqualificação do trabalho docente, pela substituição de professores por tutores mal formados e mal remunerados. Este aspecto é verdadeiro se considerarmos como inevitável que a poupança de mão de obra seja utilizada apenas na lógica de maximização do lucro. Estes não seriam problemas exclusivos da adoção de tecnologias no ensino, posto que no ensino presencial também é possível deteriorar-se a qualidade e desqualificar-se o trabalho docente a partir de uma visão contábil de maximização de lucros. Não é, certamente, a única alternativa. Poder-se-ia utilizar essa poupança de mão de obra para aumento da interatividade do professor com grupos específicos de estudantes, para adoção de novas estratégias de ensino, regidas por outra perspectiva, mais inclusiva e participativa.

O outro argumento, que parece recorrente, tem a ver com a possibilidade de abertura de um mercado complementar decorrente da generalização do ensino remoto. Isso vai desde a indústria de hardware até softwares e a possibilidade de apropriação privada desse novo campo como fonte de negócio e acumulação de capital. De fato, no Brasil, as principais plataformas de ensino remoto encontram-se nas mãos de empresas privadas que têm crescido muito, tanto na oferta de cursos (no ensino superior, por exemplo, a maior parte da oferta de ensino à distância é privada, assim como o ritmo de crescimento desta modalidade supera a presencial e no interior dessa expansão a presença privada é predominante), quanto na produção de materiais didáticos, de gestão, etc.

Inevitável lembrar o debate acerca dos Ludistas, que no início do século XIX investiam contra as máquinas na vã esperança de frear a intensificação do trabalho e a introdução de maquinaria que subsumia crescentemente o trabalho ao capital e, no curto prazo, gerava desemprego. A análise desse processo nas páginas de O Capital é muito instrutiva. De um lado, Marx ressalta ser uma tendência inexorável do sistema capitalista introduzir tecnologia poupadora de mão de obra, ampliando a redução de custos (ampliação da composição orgânica do capital). De outro, o problema não está na introdução de tecnologia poupadora de trabalho, mas a apropriação privada de seus benefícios. Daí a relevância de se incorporar conceitos como cidadania digital, do acesso universalizado a essas novas ferramentas de comunicação, e de avançarmos no debate acerca de seu controle público e democrático.

Assim, parece-me mais apropriado concentrar a reflexão na perspectiva de melhor utilização da tecnologia na ampliação da oferta pública da educação e sua organização sob o enfoque da garantia do direito humano à educação para todos.

Romualdo Portela de Oliveira (presidente da ANPAE, diretor de Pesquisa e Avaliação do Cenpec e pesquisador do SOU_CIÊNCIA)