Política de cotas, reparação histórica e transformação daqueles que não acessavam a universidade e que hoje nela estão, agora como produtores de conhecimento
Por André Luiz Vieira Dias, Cláudia Guedes Araújo Silva e Maria Angélica Pedra Minhoto
A sociedade brasileira sempre foi - e continua a ser - extremamente desigual no que se refere à repartição de seus bens econômicos e ao acesso à cultura e à educação, ainda que proclame desde os tempos da Primeira República valores modernos, como a igualdade e a liberdade para toda a sua população. A manutenção histórica dessas desigualdades se justifica, no senso comum, ora pelas diferenças genéticas ou carências culturais do povo brasileiro, ora por diferenças de capacidade e mérito individual. Sob essa perspectiva, só podem mesmo desfrutar de condições de vida digna, de riqueza e cultura os cidadãos mais “esforçados”, aqueles reconhecidos por terem mérito próprio. Porém, a reflexão sobre as condições concretas de existência, que permitem ou impedem a vida digna e o acúmulo de riqueza e cultura, tem pouco espaço no debate público. Se tivesse, a falácia do suposto mérito individual seria desmascarada com a compreensão de que os bens, produzidos coletivamente, são historicamente apropriados por uma pequena fração da sociedade brasileira.
Ampla parcela da população, sobre a qual a exploração recai com mais perversidade, nunca deixou de lutar pela superação dessa estrutura injusta, sendo habitualmente confrontada com enorme violência, inclusive pelos agentes públicos que deveriam protegê-la. Da intensa mobilização dessa população, com destaque especial ao movimento negro, o Estado brasileiro foi interpelado, no final dos anos 1990, com a reivindicação de cotas raciais e sociais para o ingresso nas universidades públicas. A partir dos anos 2000, passando pela Lei de cotas em 2012, tem sido possível vislumbrar uma mudança significativa no perfil da comunidade universitária, cada vez mais diversa e inclusiva, o que provocou previsível reprovação de parte da sociedade.
De previsões apocalípticas, que anteviam “florescer” o ódio racial na sociedade brasileira, até o alerta da perda de qualidade dos cursos de graduação que recebessem cotistas, inúmeros perigos foram (e ainda têm sido) invocados para combater a política de cotas. Essa política foi vista como uma ameaça, sem dúvida. Ameaça de atenuar o efeito perverso da desigualdade continuamente reproduzida. E os ameaçados por esse risco, que acessam com muita desenvoltura os conglomerados de mídia, bradam alto e bom som: “Injustiça! As cotas são injustas por tratarem desigualmente os que são iguais perante a lei.” Chamam de injustiça a reparação histórica dos muitos séculos de exclusão educacional!
Com razão essa parcela teme. Mas não pelo desabrochar do ódio de raça, que nesta sociedade é imemorial, ou pela perda de qualidade das universidades, já desmentida em inúmeras pesquisas que comprovam ser equivalente o desempenho de cotistas e de não-cotistas. A razão do temor reside no enfraquecimento de um dos muitos mecanismos que conservam o desequilíbrio das relações de poder: a titulação, que abre a possibilidade de continuidade dos estudos, o acesso a postos de trabalhos socialmente valorizados e a cargos públicos, pelos oriundos das camadas empobrecidas e subalternizadas, e não mais apenas pelas camadas média e alta da sociedade, encarregadas de perpetuar a desigualdade sob o manto do estado democrático de direito.
A diversidade dessa juventude, com sua força intelectual e cultural, tem mudado o jogo de forças no interior das universidades. Uma pequena amostra dessa diversidade pode ser vista na análise dos dados do ENADE (Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes) nos anos de 2013 e 2019. É incontestável a mudança no perfil do estudante nas universidades federais a partir da implantação da lei de cotas. Em relação à diversidade de renda, em todos os cursos, sem exceção, houve um aumento na participação da população cuja renda é inferior a três salários mínimos. Esse dado é explicitado na relação entre cursos e faixa de renda familiar no Enade 2013 e 2019 (Fonte: Enade 2013 e 2019).
O caminho da equidade racial está sendo consolidado em todos os cursos analisados, aumentando a participação da população preta, parda e indígena. Isso é observado na relação entre cursos e cor/raça no Enade 2013 e 2019(Fonte: Enade 2013 e 2019).
Aqueles que não acessavam a universidade hoje estão nela, não são mais objetos de estudo, mas produtores de conhecimento, alterando profundamente um ambiente que há séculos tem estado nas mesmas mãos. Outro risco àqueles que sempre operaram a produção do conhecimento para justificar o mundo tal como ele é. As cotas ameaçam – assim como a reação a elas -, porque desnudam as iniquidades históricas desta nação. Deste temor decorrem os ataques à universidade pública, com virulência nunca vista, difamando-a, asfixiando-a financeiramente e aparelhando-a com prepostos. O objetivo? Foi recentemente elucidado pelo dirigente maior da educação: “a universidade deveria, na verdade, ser para poucos”.
Poucos quem, cara pálida?
[André Luiz Vieira Dias é Pós-doutorando em Educação na Unifesp e pesquisador colaborador do SoU_Ciência]
[Cláudia Guedes Araújo Silva é Doutoranda em Educação na Unifesp e pesquisadora colaboradora do SoU_Ciência]
[Maria Angélica Pedra Minhoto é Professora do Departamento de Educação da Unifesp e pesquisadora Coordenadora do SoU_Ciência]