O projeto de sociedade presente em nossa Constituição implica em uma educação integral e para todos no nível superior
Por Thiago Borges de Aguiar
A educação superior não é um produto que você compra no mercado. Não é algo que você compra numa loja e que, se tiver algum defeito ou estiver estragado, você pode trocar. Não há “troca” ou “seu dinheiro de volta” quando estamos falando de vários anos de aprendizado e formação. Um diploma comprado em 48 parcelas que certifica um aprendizado simplista, fragmentado e pouco transformador em uma faculdade de baixa qualidade não é educação. Quando falamos de educação estamos (ou deveríamos estar) tratando de uma outra lógica, uma lógica de relação interpessoal, mediada pelo conhecimento, com vistas a compreender e intervir no mundo.
Nesse sentido, temos que constantemente discutir e lutar por uma educação superior de qualidade, buscando critérios a priori para estabelecer as condições que favoreçam o aprendizado. Cuidar da qualidade de uma instituição de educação superior ou de um curso de graduação implica cuidar da existência de condições adequadas antes de que os alunos cheguem, e cuidar para elas permaneçam e melhorem durante o passar dos anos.
Qualidade da educação é tema complexo e abrangente. Não há consenso sobre o que deve ou não ser uma boa formação, mas os critérios para defini-la precisam fazer parte de seu lugar na sociedade. Educação deve ser discutida em termos educacionais, não em termos do mundo empresarial e econômico, especialmente quando este mundo tiver o lucro como objetivo principal.
Aqui, escolhemos dirigir nosso olhar para dois critérios de qualidade: uma educação superior de qualidade é integral e para todos. Não se trata, aqui, de uma escolha arbitrária, mas de princípios tomados como valores em um projeto de sociedade justa e igualitária. Esses valores já estavam presentes em pensadores como Jan Amos Comenius, no século XVII, que defendia uma educação para todos, integral (“pansófica”, em seus termos), ao longo de toda a vida. Porém, além do caráter histórico desses princípios, sustentá-los no Brasil do século XXI consiste numa defesa de princípios constitucionais que nem sempre são observados em nosso país.
Conforme a Constituição Federal, a educação é “direito de todos” (art. 205). Note que o texto legal não está afirmando que a educação é direito de algumas pessoas que conseguiram “chegar lá” por seu mérito pessoal, nem que é o direito daquelas que possuem dinheiro para poder adquiri-la no mercado. Mas um direito de todas as pessoas, sem qualquer critério de diferenciação, seja sua condição socioeconômica, cor, raça, gênero, biotipo, presença ou não de alguma deficiência, visão de mundo, preferências, gostos etc.
O acesso aos níveis superiores de educação se dará “segundo a capacidade de cada um” (art. 208, inciso V), bem como todas as pessoas devem ter a garantia de “igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola” (art. 206, inciso I). Note que o acesso não se dará por mérito e a permanência não se dará por disponibilidade de dinheiro. É direito de todos. E quando o texto afirma “segundo as capacidades de cada um”, não está restringindo o acesso à educação superior apenas àqueles que obtiveram as melhores classificações em um exame de seleção. A “capacidade de cada um”, no contexto de uma educação para todos, não é a capacidade de ser o melhor em uma competição por poucas vagas, mas a oferta de vagas para todos os que tenham condições de cursar o nível superior. Educação para todos é, deste modo, um projeto de sociedade.
Não se trata, porém, de qualquer educação para todos. Essa educação que é direito de todos visa “ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho” (art. 205). Toda a educação (da infância à pós-graduação) não visa “adquirir conhecimento” ou “formar para o mercado de trabalho”, mas busca uma formação integral para atuar no mundo de forma plena e autônoma.
Para que essa formação integral possa ocorrer no nível superior, o texto constitucional propõe um único modelo de instituição educacional, a universidade, um lugar que deve obedecer “ao princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão” (art. 207). Este é o critério a priori, constitucionalmente definido, para a qualidade das condições oferecidas para uma formação integral em uma instituição de nível superior. Ou seja, para que haja uma formação integral é necessário que ela ocorra em uma instituição na qual ensino, pesquisa e extensão sejam ações indissociáveis.
Em linhas gerais, podemos entender ensino, pesquisa e extensão como as ações realizadas em diálogo com as finalidades da educação superior como consta no artigo 43 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, lei nº 9.394/96), que estejam relacionadas à formação dos alunos, à produção de conhecimentos e a relação com a sociedade. No entanto, a mesma lei que detalha as finalidades da educação superior promove duas importantes mudanças na compreensão de como deve ocorrer a formação nesse nível de ensino.
Lamentavelmente o princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão “desaparece” na LDB, que, adicionalmente, normatiza a possibilidade de as instituições possuírem “variados graus de abrangência ou especialização” (art. 45). Isso abre espaço para a compreensão de que as ações de ensino, pesquisa e extensão possam ocorrer separadamente numa mesma instituição ou, ainda pior, que haja formação em nível superior em instituições que estejam voltadas exclusivamente para o ensino.
Os primeiros decretos que regulamentaram as instituições de educação superior, de número 2.207/97 logo substituído pelo 2306/97, ainda reafirmavam o princípio da indissociabilidade. Porém, desde o decreto 3.860/01 e suas revisões, como o 5.773/06, até o decreto em vigor que trata especificamente de regulação, supervisão e avaliação na educação superior (9.235/17), a indissociabilidade não é mais mencionada. Há vinte anos, um princípio constitucional é ignorado nas ações do Estado brasileiro.
Ignorar um princípio constitucional, regulamentando a existência de uma série de instituições de educação superior com “variados graus de abrangência ou especialização”, que não são obrigadas a realizar pesquisa ou extensão, basicamente autoriza uma visão de que educação superior pode ser restrita a uma formação “para o mercado de trabalho”, realizada em faculdades ou centros universitários (e não em universidades), muitas delas com uma formação precária e parcial. Ignorar esse princípio constitucional, cria uma “releitura” de que basta garantir o acesso a qualquer formação em nível superior, deixando instituições universitárias de excelência para poucos que a elas conseguiram chegar “segundo sua capacidade” (?) para obter os primeiros lugares em uma disputa por poucas vagas.
Se o projeto de sociedade que queremos e defendemos é o de uma educação integral e para todos, isso implica defender o modelo de formação que está presenta na constituição federal, no qual ensino, pesquisa e extensão são indissociáveis em uma instituição. Trata-se de um enfrentamento à lógica de formação fragmentada, prescritiva, competitiva, voltada para os princípios de um mercado com suas demandas passageiras e, muitas vezes, inalcançáveis.
Para além de uma visão de que ensinar é “passar o conteúdo”, uma educação integral e para todos em nível superior é um processo de vivenciar o conteúdo como experiência significativa porque ele está em movimento e porque ele é meio para aprender pensando e atuando com/na sociedade, entendendo a instituição como parte da sociedade.
Uma formação que passa por compreender e transformar a realidade. Não é “aprender na prática”, não é “aplicar o que aprendeu”, é vivenciar a experiência da dúvida, do saber em movimento, construindo espaços de constante diálogo com a sociedade. Implica entender o caráter investigativo do ensino, o caráter social da pesquisa e a compreensão de que a universidade é para todos, alunos, professores, técnicos e mesmo aqueles que não estão “formalmente” vinculados a ela.
Em suma, uma educação superior integral e para todos, em universidades socialmente inseridas, é, utilizando termos de Paulo Freire, um exercício de diálogo para que possamos ler o mundo, com vistas a pronunciá-lo. Isto é um projeto de sociedade e não algo que possa ser comprado no mercado.
Thiago Borges de Aguiar é doutor em Educação, pós-doutorando na Unifesp e pesquisador colaborador do SoU_Ciência