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Uma canção de ciência e arte

Por Pedro Fiori Arantes

A música “A Terra Plana” (2020) de Zé Miguel Wisnik, professor da USP, compositor e cantor, é um hino contra o terraplanismo e o negacionismo que estão nos atormentando, mas, sobretudo, é uma canção de louvor à Terra e à vida, ao som e à palavra – canção que entrelaça ciência e arte, numa tessitura ética e poética. Dá continuidade, noutro momento histórico (tão terrível ou mais), à canção “Terra” de Caetano Veloso, esboçada quando na prisão, ao ver as fotografias tomadas do espaço, em que “apareces inteira” – “quem jamais te esqueceria”? Não imaginava Caetano que esqueceriam, que ela é bela e redonda.   

Na música de Zé Miguel Wisnik, o tema retorna, noutras palavras e sonoridades – e um mesmo compromisso estético e político. Um coral de crianças faz um preâmbulo: “a terra não é plana, a terra não é chata”, e uma percussão em piano e a seguir atabaques dá um ritmo basal de pulsão da criação vida, uterina, em uma nota só. Aos poucos vai se expandindo e abrindo o universo sonoro e das palavras. A ideia musical em progressão vai introduzindo harmonias e cria uma circularidade, vibrante e polifônica. A voz do poeta se completa e se alterna com a de cantoras e corais infantis. Ao final, as crianças são novamente protagonistas, o ciclo recomeça, mas a certeza continua: “a Terra é planeta, agora chega!”.

A letra de Zé Miguel circula pelo universo da palavra como a Terra pelo cosmo, desdobrando o som e o sentido. Ela tem variados e alegres jogos de linguagem, como palíndromos (o ovo e o voo), metáforas (a terra é balão de gás), metonímias (a terra é magma), prosopopeias (a terra está redondamente certa), homônimos (a terra não é chata), cacofonias (óvulo ululante), alegorias (o ovo da serpente). Wisnik brinca com palavras com a leveza da poesia e a precisão da ciência.    

A Terra não é plana, ela plana, voa no “universo curvo e dilatado”, “paira soberana”. Ela é nossa nave da vida, “leva gente sob os sóis”, “sem planos nem enganos”. Ela fecunda a vida, é “ovo e óvulo”. Ela é Natureza, “carregada de viventes”.  Ela é espetáculo, é nosso “show de bola”. Ela samba, “desfilando seu bloco, seu magma”. Por sua órbita ser elíptica, sua distância em relação ao centro sempre varia, “o centro lhe escapa”. Por ser redonda, “seu céu” também “é seu chão”, dada a curvatura do horizonte. E seu chão tem um “coração”, gravitacional, de onde pulsa energia para a vida.

Mas a Terra sofre, “carregando o peso da ganância que a maltrata” e por isso pode virar “o ovo da serpente”, “chocado por gente chocada” que quer que a Terra seja plana, que a Terra seja chata! Mas “a Terra não é chata”, são os que negam a ciência e a poesia da vida que são chatos – e genocidas. Eles negam o “óbvio ululante”, na expressão de Nelson Rodrigues, na letra de Wisnik: negam o “óvulo ululante” – o óvulo de onde vieram, e ululante porque a verdade é evidente, está na cara, mesmo dos que negam o óbvio.

Por isso, “Agora chega!”. Chega de negacionistas e genocidas.

Viva a ciência e a arte!

Link: https://www.youtube.com/watch?v=14-faGRbEPo

 

 

 

 

A Terra Plana

José Miguel Wisnik

Contra o silêncio dos espaços infinitos
Desfilando seu bloco, seu magma
Seu ar e seus mares
Entre rastros luminosos de corpos distantes
Buracos negros estrelas desgarradas

Aqui, no meio do nada
A Terra plana
A Terra plana
A Terra plana

Redondamente certa
Plana no universo deserto, curvo e dilatado
Sem planos nem enganos, paira soberana
Entre todos os astros calculados
Pois ela leva gente sob os sóis
Para nós só ela leva gente
Só ela comparece povoada de viventes
Parece um balão de gás
Enquanto desenrola seu show de bola
Até agora no universo indiferente

Só ela e ela só
É o ovo e o voo
Só ela e ela só
É o voo e o ovo
O óvulo
Ululante

E que não seja o ovo da serpente
Chocado por gente chocada, renitente
Querendo a todo custo que ela seja chata
A Terra não é plana
A Terra não é chata
A Terra simplesmente plana
Carregando o peso da ganância que a maltrata
Dançando em ondas com os astros
Seus parceiros mudos
Abraçando em círculos o centro que lhe escapa

Sem um chão que não seja o seu
Sem um chão que não seja o céu
Sem um chão que não seja o céu
Sem um chão que não seja o seu coração

A Terra é planta
A Terra é planeta
Agora chega!