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Por Soraya Smaili e Pedro Arantes

É inimaginável que, diante de uma pandemia, que já levou 530 mil vidas, somos contemplados com a notícia de que as poucas vacinas compradas, com sofrimento e muita oposição, podem ter sido objeto de superfaturamento, envolvendo questões éticas, morais e até criminais. Esse cenário desolador, pode nos ajudar a lembrar o quanto a ciência brasileira perdeu de recursos em investimento desde 2016. Paralelamente, somos obrigados a tratar da notícia de que há tentativas de lucro, mesmo diante da perda de tantas vidas. Recentemente, na CPI da Covid, falou-se do desejo de membros do governo de lucrarem 1 dólar por cada dose de vacina comprada na tal negociação. Está gravado na cabeça dos brasileiros a pergunta: “o quanto vale nossa vida ?” Podemos usar essa nova forma de ‘monetização da vida’ para um outro cálculo, tão ou mais grave.

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Manifestação de 4 de julho, Rio de Janeiro.

“Nossa vida vale 1 dólar – Fora Bolsonaro Urgente”

(Foto: Estadão Conteúdo)

 

As perdas de investimento na ciência brasileira foram brutais, muito acima do 1 dólar por dose. Fizemos um cálculo para você acompanhar. Tomando como média o padrão de investimento de 2014 e 2015, em valores liquidados (isto é, efetivamente gastos) e corrigidos pela inflação (IPCA, para janeiro de 2021), fomos avaliando a queda dos recursos de 2016 até 2020. O ano de 2016 é um marco da virada no padrão de investimento devido a três fatores: impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, Emenda do Teto dos Gastos (EC 95/2016) e extinção do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação.

Em 2014 e 2015, o Brasil investia, em média, R$ 14,2 bilhões ao ano em pesquisa, ciência, tecnologia e inovação. Somamos aqui os recursos utilizados pelo CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), que apoia a pesquisa de ponta e oferece bolsas em todos os níveis de pesquisa; FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) que aporta recursos na FINEP (Empresa pública de fomento à inovação e pesquisa); e pela CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), que coordena o sistema de pós-graduação no Brasil e oferece bolsas de pesquisa.

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Perda de recursos na Pesquisa, Ciência e Tecnologia no Brasil.

Valores liquidados entre 2014 e 2020, corrigidos pelo IPCA para janeiro de 2021

(Fonte: Execução Orçamentária da União, https://www2.camara.leg.br/orcamento-da-uniao/leis-orcamentarias/loa, coletado pelo prof. Nelson Amaral)

 

A partir de 2016, esses recursos despencam para R$ 8,5 bilhões e depois para R$ 5,2 bilhões em 2020, direcionados ao CNPq, FNDCT e CAPES. Somando a perda nos últimos 5 anos (2016 a 2020), foram R$ 38 bilhões a menos para pesquisa, ciência, tecnologia e inovação no Brasil, o que representa uma perda anual de R$ 7,45 bilhões, se comparado ao patamar 2014-15. Números assim são difíceis de materializar mentalmente. Por isso fizemos a comparação com as doses de vacina.

Para vacinar toda a população brasileira, dos idosos aos bebês, com duas doses, são necessárias 440 milhões de aplicações. Imaginando que pudessem ser aplicadas em um ano, cada dose de vacina simbolizaria a perda de 17 reais da ciência brasileira por ano, ou US$ 3,4 para adotarmos a mesma monetização do esquema de corrupção recém revelado na compra das vacinas. Esse é o mesmo preço de custo da vacina AstraZeneca, por exemplo.

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Infográfico: vacinas e desinvestimento na ciência brasileira.

(Elaboração: Guilherme Crusco de Toledo)

 

Se a indignação nacional está voltada para o 1 dólar por dose, vamos somar a isso os 3,4 dólares por dose perdidos pela ciência nacional e que poderiam estar salvando mais vidas? Se o Brasil não tivesse perdido em 5 anos R$ 38 bilhões em pesquisa e ciência, certamente estaríamos em melhores condições para produzir nossa própria vacina e avançar ainda mais em pesquisas clínicas e de tratamento. Os cortes têm impactos diversos, que o SOU_CIÊNCIA irá mapear em detalhes: sucateamento dos laboratórios, perda de pesquisas, desincentivo a novas pesquisas, fuga de cérebros, perda de autonomia e soberania na pesquisa nacional, entre outros.

Os países que saíram na frente na corrida da vacina investem muito mais em ciência que o Brasil. Segundo dados da OCDE e MCTIC, em 2017 o Brasil investiu 1,27% do PIB em Pesquisa & Desenvolvimento (somando setores públicos e privados), enquanto países que foram a ponta no combate e prevenção ao Covid-19 investiram 4,55%-Israel e 4,55%-Coréia do Sul (que tem PIB comparável com o do Brasil). Estados Unidos e China, com PIB astronômicos, investem 2,78% e 2,12% respectivamente. Isso significa que temos muito o que avançar.

O FNDCT é a maior fonte de recursos para CT&I no Brasil, em 2014 investiu R$ 3,9 bilhões e em 2020, em plena pandemia, apenas R$ 790 milhões. Depois de longa e ampla mobilização das universidades, cientistas e suas entidades, o FNDCT foi descontingenciado pelo Congresso Nacional, ao sancionar a Lei Complementar 177. Contudo, o governo federal segue bloqueando os recursos, de R$ 5 bilhões, que estão no Fundo e são utilizados pelo Ministério da Economia para outros propósitos. Não podemos mais esperar. Os recursos da Ciência devem ir para a Ciência! Ciências salva vidas!

[Soraya Smaili é professora da Escola Paulista de Medicina-Unifesp, ex-Reitora (2013-2021) e coordenadora do SOU_CIÊNCIA. Pedro Arantes é professor da Escola de Filosofia, Ciências Humanas e Letras da Unifesp, ex-Pró-reitor de Planejamento (2017-2021) e pesquisador do SOU_CIÊNCIA]